Em nossa conversa com Nuno Castelo-Branco, o interlocutor comentou, sobre os russos, que os mesmos enxergam a própria história de forma integral, orgânica. O russo médio admira Nicolau II, Stálin e Putin como representantes importantes da Russianidade em momentos distintos de sua história.
Isso não significa que o russo está privado da faculdade do juízo crítico. É quase unânime entre os russos que os governos de Gorbachov e Iéltsin foram ruins, por exemplo. Mas, de modo geral, está ausente o dualismo interno por meio do qual o povo demoniza todo um período histórico como um crime ou acidente.
Mesmo que como “período de provação”, os russos veem os seus piores momentos como parte de um processo histórico mais amplo do povo russo. Os russos querem abraçar tudo, começando pela própria Rússia. Os chineses não são tão diferentes ou mesmo os indianos. É uma maneira inclusiva e orgânica de olhar para si mesmo e para o passado; sempre com o cuidado de reconhecer as falhas e erros, mas sem exorcismo de si mesmo.
É uma mentalidade diferente do dualismo pseudo-gnóstico e exclusivista que o ocidental imprime a sua leitura da história. Se o russo vê continuidade entre Nicolau II, Stálin e Putin, e o chinês a vê entre Kangxi, Mao e Xi, o ocidental vive da negação. Os próprios EUA nascem como negação da Europa. Os alemães, hoje, vivem na negação de um período histórico que durou 12 anos. Os monarquistas vivem na negação das histórias republicanas, e os republicanos amaldiçoam os últimos reis de seus países.
Se pensarmos a França, por exemplo, o establishment institucional francês comemora a Revolução e prefere fingir que a França nasceu ali. Os monarquistas franceses, por sua vez, agem como se a Revolução tivesse instaurado o reinado do mal absoluto e nada de valor tivesse surgido em seu país desde então.
Tudo se baseia em oposições fechadas e absolutas. Dependendo do preciosismo e puritanismo da pessoa em questão, ela pode simplesmente chegar à conclusão de que milhares de anos de história de seu povo foram um grande erro.
No Brasil vemos isso em uma miríade de debates estéreis, como os travados entre monarquistas e republicanos ou entre centralistas e federalistas. Na cabeça do brasileiro ocidentalizado, você não pode comemorar Vargas e a Farroupilha ou Floriano Peixoto e Canudos ou Brizola e Geisel.
A mesma mentalidade torna impossível que celebremos portugueses, negros e indígenas como forças de construção do Brasil, às vezes em choque, às vezes em fusão. Não. Ou se celebra os descobridores OU os “oprimidos”.
Nós, no sentido contrário, queremos rejeitar esses dualismos falaciosos precisamente na mesma medida em que queremos nos desocidentalizar. Isso não significa ver o Brasil de forma acrítica, sem julgar e criticar os erros dos próceres do passado nacional. Ao contrário, queremos e devemos contextualizar esses erros e entendê-los para não repeti-los. Mas ao mesmo tempo, celebramos as virtudes desses homens naturalmente falhos que foram nossos País.
Império e República, Centro e Regiões, Brancos, Negros e Índios, Unidade e Pluralidade: é tudo Brasil.