Uma etnossociologia do Brasil

Ao contrário do que se pode ou ousa pensar (por culpa das más leituras), é perfeitamente possível esboçar brevemente a constituição etnossociológica do Brasil pelo léxico duginiano. Este texto trata dessa formulação.

O processo de construção do Brasil se inicia em 1500, mas leva tempo até podermos dizer que existe algo como um “brasileiro”. Enquanto território, o Brasil seguiu sendo por pelo menos algumas décadas uma mera extensão ultramarina de Portugal, mas com status de colônia, e não havia qualquer senso particular de identidade brasileira, em distinção seja à identidade portuguesa ou às identidades tribais e étnicas ameríndias.

De fato, considerando que a construção de uma identidade sempre envolve uma divisão “nós/outros”, não raro nos termos de “amigo/inimigo”, é nos conflitos travados em/pelo território brasileiro que devemos buscar o surgimento da figura do “brasileiro”, como algo em distinção a todas as outras identidades.

Nesse caso, ainda que a figura do brasileiro se desenvolva por um processo, talvez seja em Guararapes que possamos identificar um marco fundacional do brasileiro e do Brasil.

Até então, o território brasileiro, ainda colonial, era habitado por povoações dispersas. Os grupos que aqui habitavam (portugueses, índios, negros, caboclos, mulatos) ainda não haviam afirmado claramente sua unidade e não raro alguns desses grupos viam outros grupos como algo separado da própria identidade (o que não impedia a miscigenação, claro). O Brasil era habitado por uma miríade de etnias, mas por nenhum povo específico e exclusivo, para além do povo português.

Nas invasões holandesas, porém, fruto da negligência luso-espanhola, nosso território foi tomado de assalto por forças cujo caráter alienígena saltou tão sobejamente aos olhos de todos que todos os grupos étnicos que aqui habitavam começaram a se ver refletidos uns nos outros e a solidificarem uma consciência de unidade. Diante do piratismo protocapitalista e judaico-protestante da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, os dispersos e variados grupos que habitavam nosso território se viram marcadamente brasileiros, em sua luso-afro-indianeidade, em sua catolicidade, em seu comunitarismo solidário.

Nesse momento, com Guararapes, podemos finalmente dizer que existe um povo brasileiro, formado a partir das comunidades étnicas que habitavam o território brasileiro, finalmente autocompreendidas como algo diferente do português em sentido estrito.

O povo, etnossociologicamente, se forma pela tomada de consciência histórica e política de uma ou mais etnias. Quando isso se dá pela síntese de várias etnias, o resultado é, primariamente, uma macroetnia. O processo de construção de Estado, instituições, língua e religiosidade próprios demarca a macroetnia como um povo.

Pela própria natureza do processo, os grupos étnicos que formaram o povo brasileiro se desetnicizaram em alguma medida. Isso se dá em todo surgimento de um “povo”. Em alguns casos, a desetnicização é completa, em outros casos ela é pequena, e em um mesmo povo podem subsistir grupos com diferentes graus de autoconsciência étnica.

Ao mesmo tempo, uma macroetnia/povo se espalhando ao longo de territórios de extensão continental, com o passar dos séculos, pode também ir formando novas etnias, conforme comunidades específicas se engajam em modos de vida específicos, com os próprios costumes, vestimentas, folclore, etc.

Em alguma medida, a expansão territorial do povo brasileiro, bem como os diferentes tipos e graus de miscigenação, com a passagem de décadas e séculos levou a novos processos de etnogênese. Não obstante, por uma série de motivos, nenhuma dessas etnias se guetoizou, todas estão plenamente harmonizadas com a Brasilidade.

Nesse sentido, existe um único povo brasileiro, formado por um processo de etnogênese que gerou uma macroetnia, com vários grupos étnicos com graus variados de autoconsciência étnica, todos harmonizados em uma brasilidade geral que constitui a nossa identidade nacional. Do ponto de vista político, ao povo corresponde o Estado Tradicional, quando o povo ainda não foi modernizado. Alguns povos, escolhidos por Deus em determinados momentos, constroem Impérios, a máxima realização política dos povos humanos. E a corrupção, degeneração ou desintegração moderna dos Impérios ou Estados Tradicionais leva à formação de Estados-Nações, passo preparatório para a Cosmópole Global.

Processos semelhantes se deram nas origens de todos os outros povos, ainda que no povo brasileiro, pela presença de todas as raças humanas, encontramos um nível de universalidade inédito, que levou José de Vasconcelos a nos enxergar e aos nossos vizinhos como “raça cósmica”. A uma “raça cósmica”, naturalmente, só pode corresponder um Império Cósmico, mas isso é tema para outra reflexão.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

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