Se dependermos da mídia de massa ocidental, inclusive da brasileira, não saberemos nada sobre os fatos do conflito ucraniano, menos ainda da sequência de eventos que levou ao conflito. Por isso, é interessante compreender a sequência de eventos, bem como os contornos estratégico-militares da operação russa propriamente dita.
Na Marcha para a Guerra
Durante anos, de Mali ao Afeganistão, tenho trabalhado pela paz e arrisquei minha vida por ela. Portanto, não é uma questão de justificar a guerra, mas de entender o que levou a ela. Observo que os “especialistas” que se revezam nos aparelhos de televisão analisam a situação com base em informações duvidosas, que na maioria das vezes são hipóteses que se tornaram fatos, de modo que não podemos entender o que está acontecendo. É assim que o pânico é criado.
O problema não é tanto quem está certo neste conflito, mas como nossos líderes tomam as decisões.
Tentemos procurar as raízes do conflito. Começa com aqueles que nos últimos oito anos têm falado de “separatistas” ou “independentistas” no Donbass. Isto não é verdade. Os referendos realizados pelas duas repúblicas autoproclamadas de Donetsk e Lugansk em maio de 2014 não foram referendos sobre “independência” (независимость), como afirmaram alguns jornalistas inescrupulosos, mas referendos sobre “autodeterminação” ou “autonomia” (самостоятельность). O termo “pró-russos” sugere que a Rússia era parte do conflito, o que não é verdade, e teria sido mais honesto usar o termo “russófilos”. Além disso, estes referendos foram realizados contra o conselho de Vladimir Putin.
De fato, estas repúblicas não se encaminhavam a se separar da Ucrânia, mas a ter um status autônomo que lhes garantisse o uso do russo como língua oficial. O primeiro ato legislativo do novo governo resultante da derrubada do Presidente Yanukovych foi a abolição, em 23 de fevereiro de 2014, da lei Kivalov-Kolesnichenko de 2012, que tornou o russo uma língua oficial. É como se os golpistas decidissem que o francês e o italiano deveriam deixar de ser idiomas oficiais na Suíça.
Esta decisão causou uma tempestade entre a população de língua russa. O resultado foi uma repressão feroz contra as regiões de língua russa (Odessa, Dnepropetrovsk, Kharkov, Lugansk e Donetsk) que começou em fevereiro de 2014 e levou a uma militarização da situação e alguns massacres (em Odessa e Mariupol, os mais importantes). No final do verão de 2014, somente as autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk permaneciam.
Nesta fase, os estados maiores ucranianos eram demasiado rígidos e agarrados a uma abordagem doutrinária da arte das operações e não conseguiram prevalecer sobre o inimigo. Um exame do curso dos combates de 2014-2016 em Donbass mostra que o Estado-Maior ucraniano aplicou sistemática e mecanicamente os mesmos padrões operacionais. Entretanto, a guerra travada pelos autonomistas foi muito semelhante à que observamos no Sahel: operações altamente móveis conduzidas com meios leves. Com uma abordagem mais flexível e menos doutrinária, os rebeldes conseguiram tirar proveito da inércia das forças ucranianas para “encurralá-las” repetidamente.
Em 2014, como responsável da OTAN no combate à proliferação de armas leves, estamos tentando detectar entregas de armas russas aos rebeldes para ver se Moscou está envolvida. As informações que recebemos então vieram quase inteiramente da inteligência polonesa e não “cabiam” nas informações vindas da OSCE: apesar de algumas acusações bastante grosseiras, não havia entregas de armas e equipamentos militares da Rússia.
Os rebeldes estavam armados graças às deserções de unidades ucranianas de língua russa para o lado rebelde. À medida que as falhas ucranianas continuam, tanques, artilharia e batalhões antiaéreos incham as fileiras dos autonomistas. Foi isto que levou os ucranianos a assinar os Acordos de Minsk.
Mas logo após assinar os Acordos de Minsk 1, o presidente ucraniano Petro Poroshenko lançou uma grande operação antiterrorista (ATO/Антититерориристична операція) contra o Donbass. Bis repetitia placent: mal aconselhados pelos oficiais da OTAN, os ucranianos sofreram uma derrota esmagadora em Debaltsevo que os obrigou a assinar os Acordos de Minsk 2…
É essencial lembrar aqui que os Acordos de Minsk 1 (setembro de 2014) e Minsk 2 (fevereiro de 2015) não previram a separação ou independência das repúblicas, mas sua autonomia dentro do quadro da Ucrânia. Aqueles que leram os acordos (são muito, muito, muito poucos) notarão que está escrito na íntegra que o status das repúblicas deveria ser negociado entre Kiev e os representantes das repúblicas, para uma solução interna na Ucrânia.
É por isso que, desde 2014, a Rússia tem sistematicamente exigido sua implementação, recusando-se a participar das negociações como sendo um assunto interno ucraniano. Por outro lado, o Ocidente – liderado pela França – tentou sistematicamente substituir os Acordos de Minsk pelo “formato Normandia”, o que colocou russos e ucranianos frente a frente. Entretanto, lembremo-nos de que nunca houve tropas russas no Donbass antes de 23-24 de fevereiro de 2022. Além disso, os monitores da OSCE nunca observaram o menor vestígio de unidades russas operando no Donbass.
O exército ucraniano estava em um estado deplorável. Em outubro de 2018, após quatro anos de guerra, o procurador militar chefe da Ucrânia, Anatoly Matios, disse que a Ucrânia havia perdido 2.700 homens no Donbass.
O Ministério da Defesa ucraniano recorreu então à OTAN para obter ajuda para tornar suas forças armadas mais “atraentes”. Tendo já trabalhado em projetos similares dentro das Nações Unidas, a OTAN me pediu para participar de um programa para restaurar a imagem das forças armadas ucranianas. Mas este era um processo de longo prazo e os ucranianos queriam avançar rapidamente.
Assim, para compensar a falta de soldados, o governo ucraniano recorreu às milícias paramilitares. Eles são constituídos principalmente por mercenários estrangeiros, muitas vezes militantes de extrema-direita. A partir de 2020, eles representam cerca de 40 por cento das forças ucranianas e contam com cerca de 102.000 homens, de acordo com a Reuters. Eles são armados, financiados e treinados pelos EUA, Grã-Bretanha, Canadá e França. Há mais de 19 nacionalidades, incluindo a suíça.
Assim, os países ocidentais criaram e apoiaram claramente as milícias ucranianas de extrema-direita. Em outubro de 2021, o Jerusalem Post deu o alarme ao denunciar o projeto Centuria. Estas milícias estão operando no Donbass desde 2014, com apoio ocidental. Embora o termo “nazista” possa ser contestado, o fato é que estas milícias são violentas, transmitem uma ideologia nauseante e são virulentamente antissemitas. Seu antissemitismo é mais cultural do que político, portanto o termo “nazista” não é realmente apropriado. Seu ódio ao judeu tem sua origem nas grandes fomes dos anos 1920 e 1930 na Ucrânia, resultantes do confisco das colheitas por Stálin para financiar a modernização do Exército Vermelho. Este genocídio – conhecido na Ucrânia como Holodomor – foi implementado pela NKVD (a precursora da KGB), cuja liderança era composta principalmente por judeus. É por isso que hoje os extremistas ucranianos estão pedindo a Israel que peça desculpas pelos crimes do comunismo, como aponta o Jerusalem Post. Portanto, estamos longe de uma “reescrita da história” por Vladimir Putin.
Estas milícias, provenientes dos grupos de extrema-direita que lideraram a revolução Euromaidan em 2014, são compostas por indivíduos fanáticos e brutais. O mais conhecido é o Regimento Azov, cujo emblema lembra a 2ª Divisão Panzer SS do Reich, reverenciada na Ucrânia por ter libertado Kharkov dos soviéticos em 1943, antes de realizar o massacre de Oradour-sur-Glane em 1944 na França.
Entre as celebradas figuras do Regimento Azov estava o oposicionista Roman Protassevich, que foi preso em 2021 pelas autoridades bielorussas em conexão com o caso RyanAir FR4978.
Mas então deve ser mostrado que o Presidente Lukashenko é um canalha e Protassevich um “jornalista” amante da democracia. Entretanto, uma investigação bastante edificante realizada por uma ONG americana em 2020 expôs as atividades militantes de extrema direita de Protassevitch. O movimento de conspiração ocidental foi então posto em marcha e a mídia inescrupulosa “preparou” sua biografia. Finalmente, em janeiro de 2022, é publicado o relatório da ICAO mostrando que, apesar de alguns erros processuais, a Bielorrússia agiu de acordo com as regras em vigor e que o MiG-29 decolou 15 minutos depois que o piloto da RyanAir decidiu pousar em Minsk. Portanto, não há nenhuma trama bielorrussa, certamente não com Putin.
O rótulo “nazista” ou “neonazista” dado aos paramilitares ucranianos é considerado propaganda russa. Talvez; mas esta não é a opinião do Times of Israel, do Centro Simon Wiesenthal ou do Centro de Contra-terrorismo da Academia de West Point. Mas permanece questionável, porque em 2014 a revista Newsweek parecia associá-los mais ao… Estado Islâmico. Faça sua escolha.
Assim, o Ocidente apoia e continua a armar milícias que têm sido culpadas de inúmeros crimes contra a população civil desde 2014: estupros, torturas e massacres. Mas, embora o governo suíço tenha sido rápido em adotar sanções contra a Rússia, não adotou nenhuma contra a Ucrânia, que vem massacrando sua própria população desde 2014.
A Guerra
Desde novembro de 2021, os americanos têm ameaçado constantemente que haverá uma invasão russa na Ucrânia, as os ucranianos não pareciam estar de acordo. Por que não?
Temos que voltar para o 24 de março de 2021. Naquele dia, Volodymyr Zelensky emitiu um decreto para a reconquista da Criméia e começou a mobilizar suas forças no sul do país. Ao mesmo tempo, vários exercícios da OTAN foram realizados entre o Mar Negro e o Mar Báltico, acompanhados por um aumento significativo dos voos de reconhecimento ao longo da fronteira russa. A Rússia então conduziu uma série de exercícios para testar a prontidão operacional de suas tropas e demonstrar que estava no controle da situação.
Em violação aos Acordos de Minsk, a Ucrânia estava realizando operações aéreas em Donbass utilizando drones, incluindo pelo menos um ataque a um depósito de combustível em Donetsk em outubro de 2021. A imprensa americana aponta isso, mas não a europeia, e ninguém condena essas violações.
Em fevereiro de 2022, os eventos se aceleram. Em 7 de fevereiro, durante sua visita a Moscou, Emmanuel Macron reafirmou a Vladimir Putin seu compromisso com os Acordos de Minsk, compromisso que ele repetiu no final de sua reunião com Volodymyr Zelensky no dia seguinte. Mas em 11 de fevereiro em Berlim, após nove horas de trabalho, a reunião dos conselheiros políticos dos líderes do “formato Normandia” terminou sem nenhum resultado concreto: os ucranianos continuaram a se recusar a implementar os acordos de Minsk, aparentemente sob pressão dos Estados Unidos. Vladimir Putin aponta que Macron tem feito promessas vazias e que o Ocidente não está disposto a fazer cumprir os acordos, como tem feito durante oito anos.
Os preparativos ucranianos na zona de contato continuam. O parlamento russo está alarmado e, em 15 de fevereiro, pede a Vladimir Putin que reconheça a independência das repúblicas, o que ele se recusa a fazer.
Em 17 de fevereiro, o Presidente Joe Biden anuncia que a Rússia atacará a Ucrânia nos próximos dias. Como ele sabe? Mas desde o dia 16, os bombardeios de artilharia das aldeias de Donbass aumentaram drasticamente, como mostram os relatórios diários dos observadores da OSCE. Naturalmente, nem a mídia, nem a União Europeia, nem a OTAN, nem qualquer governo ocidental reagiu ou interveio. Mais tarde será alegado que se trata de desinformação russa. Na verdade, parece que a UE e alguns países mantiveram deliberadamente em segredo o massacre da população do Donbass, sabendo que isso provocaria a intervenção russa.
Ao mesmo tempo, há relatos de sabotagem em Donbass. Em 18 de janeiro, os caças Donbass interceptaram sabotadores equipados com equipamentos ocidentais e poloneses que pretendiam criar incidentes químicos em Gorlivka. Eles poderiam ser mercenários da CIA, dirigidos ou “aconselhados” por americanos e compostos por combatentes ucranianos ou europeus, para realizar ações de sabotagem nas repúblicas do Donbass.
De fato, já em 16 de fevereiro, Joe Biden sabia que os ucranianos haviam começado a bombardear a população civil do Donbass, o que colocou Vladimir Putin diante de uma escolha difícil: ajudar Donbass militarmente e criar um problema internacional ou ficar parado e ver a população russófona do Donbass ser esmagada.
Se decide intervir, Vladimir Putin pode invocar a obrigação internacional da “Responsabilidade de Proteger” (R2P). Mas ele sabe que, qualquer que seja sua natureza ou escala, a intervenção desencadeará uma barragem de sanções. Consequentemente, quer sua intervenção seja limitada a Donbass ou vá mais longe para pressionar o Ocidente sobre o status da Ucrânia, o preço a ser pago será o mesmo. Foi o que ele explicou em seu discurso de 21 de fevereiro.
Naquele dia ele acedeu ao pedido da Duma e reconheceu a independência das duas repúblicas do Donbass e, ao mesmo tempo, assinou tratados de amizade e assistência com elas.
O bombardeio da artilharia ucraniana da população do Donbass continuou e em 23 de fevereiro as duas repúblicas solicitaram assistência militar russa. Em 24 de fevereiro, Vladimir Putin invocou o artigo 51 da Carta da ONU, que prevê a assistência militar mútua no âmbito de uma aliança defensiva.
A fim de tornar a intervenção russa completamente ilegal aos olhos da opinião pública, o fato de a guerra ter realmente começado em 16 de fevereiro é deliberadamente ocultado. O exército ucraniano se preparava para atacar Donbass já em 2021, como alguns serviços de inteligência russos e europeus bem sabiam… Os juristas irão julgar.
Em seu discurso de 24 de fevereiro, Vladimir Putin declarou os dois objetivos de sua operação: “desmilitarizar” e “desnazificar” a Ucrânia. Portanto, não se trata de tomar a Ucrânia, presumivelmente nem mesmo de ocupá-la, e certamente não se trata de destruí-la.
A partir daí, nossa visibilidade sobre o curso da operação é limitada: os russos têm excelente segurança operacional (OPSEC) e os detalhes de seu planejamento não são conhecidos. Mas rapidamente, o curso da operação nos permite compreender como os objetivos estratégicos foram traduzidos no nível operacional.
Desmilitarização:
- a destruição no solo da força aérea ucraniana, dos sistemas de defesa aérea e dos meios de reconhecimento;
- a neutralização das estruturas de comando e inteligência (C3I) e das principais rotas logísticas no interior do território;
- o cerco do grosso do exército ucraniano concentrado no sudeste do país.
Desnazificação:
- a destruição ou neutralização dos batalhões voluntários que operam nas cidades de Odessa, Carcóvia e Mariupol, assim como diversas instalações no território.
Desmilitarização
A ofensiva russa foi conduzida de uma maneira muito “clássica”. Inicialmente – como os israelenses haviam feito em 1967 – com a destruição das forças aéreas no solo nas primeiras horas. Depois vimos uma progressão simultânea em vários eixos de acordo com o princípio da “água corrente”: avanços em todos os lugares onde a resistência era fraca e deixar as cidades (que estavam muito famintas por tropas) para mais tarde. No norte, a usina de Chernobyl foi imediatamente ocupada para evitar atos de sabotagem. É claro que não há imagens de soldados ucranianos e russos guardando a fábrica juntos.
A ideia de que a Rússia está tentando tomar Kiev, a capital, para eliminar Zelenski, normalmente vem do Ocidente: é o que eles fizeram no Afeganistão, Iraque, Líbia e o que eles queriam fazer na Síria com a ajuda do Estado Islâmico. Mas Vladimir Putin nunca teve a intenção de derrubar ou matar Zelenski. Em vez disso, a Rússia está tentando mantê-lo no poder, pressionando-o a negociar, circundando Kiev. Até agora, ele se recusou a implementar os Acordos de Minsk, mas agora os russos querem obter a neutralidade da Ucrânia.
Muitos comentaristas ocidentais ficaram surpresos que os russos continuassem a buscar uma solução negociada enquanto realizavam operações militares. A explicação está no pensamento estratégico russo desde os tempos soviéticos. Para o Ocidente, a guerra começa quando a política termina. Mas a abordagem russa segue uma inspiração clausewitziana: a guerra é a continuidade da política e é possível passar fluidamente de uma para a outra, mesmo durante o combate. Isto cria pressão sobre o adversário e o pressiona a negociar.
De um ponto de vista operacional, a ofensiva russa foi exemplar: Em seis dias, os russos tomaram um território tão grande quanto o Reino Unido, com uma taxa de avanço mais rápida do que a Wehrmacht havia conseguido em 1940.
A maior parte do exército ucraniano foi enviada para o sul do país em preparação para uma grande operação contra Donbass. Como resultado, as forças russas conseguiram cercá-lo desde o início de março no “caldeirão” entre Slavyansk, Kramatorsk e Severodonetsk, com um avanço do leste através de Carcóvia e outro do sul da Crimeia. Tropas das repúblicas de Donetsk (DPR) e Lugansk (LPR) complementam as forças russas com um empurrão do sudeste.
No momento, as forças russas estão gradualmente apertando seu cerco, mas não estão mais sob pressão de tempo. Seu objetivo de desmilitarização está quase completo e as demais forças ucranianas não possuem mais uma estrutura de comando operacional e estratégica.
A “desaceleração” que nossos “especialistas” atribuem à má logística é apenas a consequência de terem atingido seus objetivos. A Rússia parece não querer empreender uma ocupação de todo o território ucraniano. Na verdade, parece que a Rússia pretende limitar seu avanço à fronteira linguística do país.
O bombardeio de civis
Nossa mídia fala de bombardeio indiscriminado de civis, especialmente em Carcóvia, e imagens dantescas são transmitidas repetidamente. No entanto, Gonzalo Lira, um hispano-americano que mora lá, nos apresenta uma cidade calma nos dias 10 e 11 de março. Claro, é uma cidade grande e não se pode ver tudo, mas isto parece indicar que não estamos na guerra total que estamos continuamente vendo em nossas telas.
Quanto às repúblicas do Donbass, elas “libertaram” seus próprios territórios e estão lutando na cidade de Mariupol.
Desnazificação
Em cidades como Carcóvia, Mariupol e Odessa, a defesa é realizada por milícias paramilitares. Eles sabem que o objetivo da “desnazificação” é principalmente dirigido contra elas.
Para um atacante em uma zona urbanizada, os civis são um problema. É por isso que a Rússia pretende criar corredores humanitários para esvaziar as cidades de civis e deixar apenas as milícias para lutar mais facilmente.
Ao contrário, essas milícias tentam manter civis nas cidades para dissuadir o exército russo de entrar em combate. É por isso que eles resistem à criação desses corredores e fazem de tudo para tornar inúteis os esforços russos: eles podem usar civis como “escudos humanos”. Vídeos mostrando civis tentando deixar Mariupol e sendo espancados por combatentes do regimento Azov são, é claro, cuidadosamente censurados no país.
No Facebook, o grupo Azov foi considerado na mesma categoria do Estado Islâmico e sujeito à “política sobre indivíduos e organizações perigosos” da plataforma. Como resultado, foi proibida a sua glorificação e os “posts” que a favorecem foram sistematicamente proibidos. Mas em 24 de fevereiro, o Facebook mudou sua política e permitiu postagens favoráveis à milícia. Dentro do mesmo espírito, em março, a plataforma autorizou a apologia do assassinato de soldados e líderes russos em países da antiga Europa Oriental. Eis os valores que inspiram nossos líderes, como veremos.
Nossos meios de comunicação propagam uma imagem romântica da resistência popular. Foi esta imagem que levou a União Europeia a financiar a distribuição de armas para a população civil. Isto é um ato criminoso. Como chefe da doutrina de manutenção da paz na ONU, trabalhei na questão da proteção da população civil. Constatamos que a violência contra os civis ocorria em contextos muito específicos. Em particular, quando há uma abundância de armas e nenhuma estrutura de comando.
Estas estruturas de comando são a essência dos exércitos: sua função é canalizar o uso da força para um alvo. Ao armar os cidadãos aleatoriamente, como é atualmente o caso, a UE os transforma em combatentes, com o consequente efeito de torná-los alvos potenciais. Além disso, sem comando, sem metas operacionais, a distribuição de armas leva inevitavelmente ao revanchismo, ao banditismo e a ações que são mais mortais do que eficazes. A guerra se torna um assunto emocional. A força se torna violência. Foi o que aconteceu em Tawarga (Líbia) de 11 a 13 de agosto de 2011, onde 30.000 africanos negros foram massacrados com armas lançadas (ilegalmente) de paraquedas pela França. Além disso, o Instituto Real Britânico de Estudos Estratégicos não vê nenhum valor agregado nessas entregas de armas.
Além disso, ao entregar armas a um país em guerra, o entregador se expõe a ser considerada um beligerante. Os ataques russos de 13 de março de 2022 contra a base aérea de Mykolayev seguem os avisos russos de que as entregas de armas seriam tratadas como alvos hostis.
A UE está repetindo a experiência desastrosa do Terceiro Reich nas últimas horas da Batalha de Berlim. A guerra deve ser deixada aos militares e quando um dos lados perde isso deve ser aceito. E para que haja resistência, ela deve ser conduzida e estruturada. Mas estamos fazendo exatamente o contrário: estamos pressionando os cidadãos a ir e lutar e, ao mesmo tempo, o Facebook está autorizando clamores pelo assassinato de soldados e líderes russos. Lá se vão os valores que nos inspiram.
Alguns serviços de inteligência veem esta decisão irresponsável como uma forma de usar a população ucraniana como bucha de canhão para combater a Rússia de Vladimir Putin. Este tipo de decisão assassina deveria ter sido deixada aos colegas do avô de Ursula von der Leyen. Teria sido melhor entrar em negociações e assim obter garantias para a população civil do que acrescentar lenha à fogueira. É fácil ser combativo com o sangue de outras pessoas.
A Maternidade de Mariupol
É importante entender antecipadamente que não é o exército ucraniano que está defendendo Mariupol, mas a milícia Azov, composta por mercenários estrangeiros.
Em seu resumo da situação de 7 de março de 2022, a missão russa da ONU em Nova Iorque afirma que “os residentes relatam que as forças armadas ucranianas expulsaram o pessoal da maternidade número 1 na cidade de Mariupol e instalaram um posto de tiro dentro das instalações”.
Em 8 de março, a mídia russa independente Lenta.ru publicou o testemunho de civis de Mariupol que afirmaram que a maternidade havia sido assumida pela milícia do regimento Azov e que esta última havia expulsado os ocupantes civis à mão armada. Eles confirmam as declarações do embaixador russo algumas horas antes.
O hospital de Mariupol ocupa uma posição de comando, perfeitamente adequada para a instalação de armas antitanque e para observação. Em 9 de março, as forças russas atacaram o edifício. De acordo com a CNN, 17 pessoas foram feridas, mas as fotos não mostram nenhuma vítima nas instalações e não há provas de que as vítimas mencionadas estejam relacionadas a este ataque. Fala-se de crianças, mas na realidade não há evidência. Isto pode ser verdade, mas pode não ser verdade…. Isto não impede os líderes da UE de considerá-lo um crime de guerra. Permitindo que Zelenski peça uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia.
Na realidade, não sabemos exatamente o que aconteceu. Mas a sequência dos acontecimentos tende a confirmar que as forças russas atacaram uma posição do regimento Azov e que a maternidade estava então livre de civis.
O problema é que as milícias paramilitares que defendem as cidades são encorajadas pela comunidade internacional a desconsiderar os costumes da guerra. Os ucranianos parecem ter reproduzido o cenário da maternidade da cidade do Kuwait de 1990, que foi totalmente encenada por Hill & Knowlton por US$ 10,7 milhões para convencer o Conselho de Segurança da ONU a intervir no Iraque para a Operação Escudo/Tempestade do Deserto.
Os políticos ocidentais aceitaram ataques civis em Donbass por oito anos sem realizar nenhuma sanção contra o governo ucraniano. Há muito tempo, entramos numa dinâmica na qual os políticos ocidentais aceitaram sacrificar o direito internacional ao seu objetivo de enfraquecer a Rússia.
Conclusões
Como antigo profissional de inteligência, a primeira coisa que me impressiona é a total ausência dos serviços de inteligência ocidentais no retrato da situação ao longo do ano passado. Na Suíça, os serviços têm sido criticados por não fornecer uma imagem precisa da situação. De fato, parece que em todo o mundo ocidental os serviços têm sido sobrecarregados por políticos. O problema é que são os políticos que decidem: o melhor serviço de inteligência do mundo é inútil se o tomador de decisões não ouve. Foi o que aconteceu nesta crise.
Entretanto, enquanto alguns serviços de inteligência tinham uma imagem muito precisa e racional da situação, outros tinham claramente a mesma imagem que a propagada por nossa mídia. Nesta crise, os serviços dos países da “nova Europa” desempenharam um papel importante. O problema é que, por experiência, eu os considero extremamente ruins na análise: doutrinários, falta-lhes independência intelectual e política para avaliar uma situação com “qualidade” militar. É melhor tê-los como inimigos do que como amigos.
Em segundo lugar, parece que em alguns países europeus os políticos ignoraram deliberadamente seus serviços, a fim de responder ideologicamente à situação. É por isso que esta crise tem sido irracional desde o início. Deve-se notar que todos os documentos que foram apresentados ao público durante esta crise foram apresentados por políticos com base em fontes comerciais….
Alguns políticos ocidentais queriam claramente um conflito. Nos EUA, os cenários de ataque apresentados por Anthony Blinken ao Conselho de Segurança foram o trabalho de uma Equipe Tigre trabalhando para ele: ele fez exatamente o que Donald Rumsfeld fez em 2002, que foi “contornar” a CIA e outras agências de inteligência que eram muito menos assertivas em relação às armas químicas iraquianas.
Os eventos dramáticos que estamos testemunhando hoje têm causas que conhecemos mas que nos recusamos a ver:
- Estrategicamente, a expansão da OTAN (que não tratamos aqui);
- Politicamente, a recusa do Ocidente em implementar os Acordos de Minsk; e
- Operacionalmente, os contínuos e repetidos ataques às populações civis do Donbass durante os últimos anos e a dramática escalada no final de fevereiro de 2022.
Em outras palavras, podemos naturalmente deplorar e condenar o ataque russo. Mas nós (isto é, os EUA, a França e a UE na liderança) criamos as condições para a eclosão de um conflito. Mostramos compaixão pelo povo ucraniano e pelos dois milhões de refugiados. Tudo bem. Mas se tivéssemos tido um mínimo de compaixão pelo mesmo número de refugiados das populações ucranianas do Donbass massacradas pelo seu próprio governo e acumuladas na Rússia por oito anos, provavelmente nada disso teria acontecido.
Se o termo “genocídio” se aplica aos abusos sofridos pela população do Donbass é uma questão em aberto. O termo é normalmente reservado para casos maiores (Holocausto, etc.), mas a definição da Convenção sobre Genocídio é provavelmente ampla o suficiente para ser aplicada. Os juristas darão as boas-vindas a isso.
É evidente que este conflito nos levou à histeria. As sanções parecem ter se tornado a ferramenta de escolha em nossa política externa. Se tivéssemos insistido para que a Ucrânia cumprisse os Acordos de Minsk, que havíamos negociado e endossado, nada disso teria acontecido. A condenação de Vladimir Putin é também a nossa condenação. Não vale a pena reclamar depois: deveríamos ter agido mais cedo. Mas nem Emmanuel Macron (como fiador e membro do Conselho de Segurança da ONU), nem Olaf Scholz, nem Volodymyr Zelensky respeitaram seus compromissos. No final, a verdadeira derrota é a daqueles que não têm palavra.
A UE não foi capaz de promover a implementação dos Acordos de Minsk; pelo contrário, não reagiu quando a Ucrânia estava bombardeando sua própria população no Donbass. Se o tivesse feito, Vladimir Putin não teria tido necessidade de reagir. Ausente da fase diplomática, a UE se distinguiu por alimentar o conflito. Em 27 de fevereiro, o governo ucraniano concordou em abrir negociações com a Rússia. Mas algumas horas depois, a UE votou um orçamento de 450 milhões de euros para fornecer armas à Ucrânia, acrescentando lenha à fogueira. A partir deste ponto, os ucranianos acreditam que não precisam chegar a um acordo. A resistência das milícias Azov em Mariupol levará até mesmo a um aumento de 500 milhões de euros em armas.
Líderes moderados da Ucrânia assassinados
Na Ucrânia, com a aprovação dos países ocidentais, os apoiadores das negociações estão sendo eliminados. Denis Kireyev, um dos negociadores ucranianos, foi assassinado em 5 de março pelo serviço secreto ucraniano (SBU) por ser muito pró-russo e considerado um traidor. O mesmo destino recaiu sobre Dmitry Demyanenko, ex-chefe adjunto da direção principal da SBU para Kiev e sua região, que foi morto em 10 de março por ser favorável demais a um acordo com a Rússia: ele foi baleado pela milícia Mirotvorets (“Pacificadores”). Esta milícia está associada ao site Mirotvorets, que compila uma lista de “inimigos da Ucrânia”, com seus dados pessoais, endereços e números de telefone, para que possam ser perseguidos ou mesmo eliminados – uma prática que é punível em muitos países, mas não na Ucrânia. A ONU e alguns países europeus exigiram seu fechamento, mas a Rada recusou.
No final, o preço será alto, mas Vladimir Putin provavelmente alcançará os objetivos que se propôs a alcançar. Seus laços com Pequim se solidificaram. A China surge como mediadora no conflito, enquanto a Suíça entra na lista de inimigos da Rússia. Os americanos têm que pedir petróleo à Venezuela e ao Irã para sair do atoleiro energético em que se meteram: Juan Guaidó está definitivamente fora de cena e os Estados Unidos têm que recuar dolorosamente nas sanções impostas a seus inimigos.
Os ministros ocidentais que procuram afundar a economia russa e fazer o povo russo sofrer, ou mesmo clamar pelo assassinato de Putin, provam (mesmo que tenham revertido parcialmente a forma de suas palavras, mas não a substância!) que nossos líderes não são melhores do que aqueles que odiamos.
Fonte: Centre Français de Recherche sur le Renseignement