A Editora ARS REGIA está promovendo o lançamento da obra “Para Além dos Direitos Humanos. Defender as Liberdades”, do filósofo francês Alain de Benoist. Para melhor apresentar a obra, nos foi disponibilizado um ensaio introdutório, que em uma versão modificada figura como prefácio à obra, apto a demonstrar a importância e atualidade das reflexões de Benoist sobre a ideologia dos direitos humanos.
Inicio este prefácio com uma nota pessoal, expressando primeiramente minha alegria pela honra da oportunidade que me foi dada.
Pouco tempo após me envolver com a Nova Resistência, ainda em sua fase embrionária, vi uma rede fechada de contatos virtuais rapidamente instituir em alguns centros urbanos brasileiros algumas células modestas em tamanho, porém repletas de membros dedicados e talentosos. Se hoje funcionamos como um pequeno partido político, com um pensamento comunitarista, trabalhista e revolucionário amadurecido através de uma rica e paciente síntese envolvendo muitas das maiores mentes que já tive o prazer de conhecer, não tenho dúvidas de que foi através de nosso esforço coletivo.
Hoje se pode falar, com toda a segurança, que estamos na vanguarda da construção de um pensamento comunitarista nativamente brasileiro.
É como parte de nosso amadurecimento intelectual coletivo que podemos almejar estar de pé nos ombros de gigantes e voltar-nos para os maiores pensadores em quem nossa iniciativa encontra ao menos potentes ferramentais teóricos, quiçá companheiros de viagem.
Nesta jornada, é indispensável o trabalho da Editora Ars Regia, em estreitos laços com a Nova Resistência. Após retraduzir e republicar a Quarta Teoria Política de Alexander Dugin, grande fonte de inspiração para todos nós, e traduzir a Ordo Pluriversalis de Leonid Savin, a editora volta seus olhos para a Mãe da latinidade e para a nação dos filósofos: aquela com Globalização Infeliz, do luminar da filosofia dissidente italiana Diego Fusaro, e esta com a versão atualizada de Para Além dos Direitos Humanos, do erudito ensaísta, filósofo e jornalista francês Alain de Benoist.
Ao escrever este prefácio, penso que o leitor talvez esteja ainda se perguntando quem é De Benoist, e ponho-me a pensar bastante em como apresentá-lo a um público diversificado. Decidi não ocupar este espaço com uma biografia enciclopédica do autor, mas, diferentemente da maioria da maioria dos textos biográficos, começar a apresentá-lo por sua família se mostra mais do que mera conveniência narrativa.
A família De Benoist, ultimamente originária da nobreza belga, traz consigo uma longa tradição de formação de intelectuais. Em sua mocidade, o jovem Alain teve a oportunidade de conviver com seu avô Charles de Benoist, que, apesar de apenas ter conhecido uma França republicana, cresceu em uma família ainda empenhada nos assuntos políticos e militares do país, e contribuiu para as primícias da indústria automobilística inventando um dos primeiros modelos comerciais franceses, o Licorne. Sua avó era Yvonne Druet, sobrinha do ícone da pintura impressionista Gustave Moreau, e secretária pessoal do polímata francês Gustave Le Bon, sobre o qual se faz apropriada uma breve digressão.
Le Bon foi notório por se aprofundar em diversas áreas do conhecimento, e, bebendo desta miríade de fontes, apresentar um pensamento original e matizado, até hoje fascinando e confundindo aqueles que perscrutam sua obra e se deparam com uma mistura heterogênea entre expressões majestosas de revolucionária genialidade produtiva e ideias datadas que nosso senso de decência nos impele a rejeitar categoricamente. Como próprio reflexo de sua invariável ambiguidade, sua herança é disputada por uma variedade de pensadores e agentes políticos, do liberalismo republicano ao islamismo político, e do comunismo ao nazifascismo.
Dono de uma biblioteca particular de ao menos 250 mil volumes, Alain de Benoist se destaca no debate público francês como um obstinado desafiador do status quo. Tendo atrás de si um século de experiências históricas a mais que Le Bon, bebe de fontes tão polifônicas quanto o repertório daqueles que foram influenciados pelo mesmo, e portanto se associa a movimentos tão diversificados quanto o antiliberalismo, o nacionalismo europeu, o neopaganismo, o terceiro-mundismo e a ecologia radical. A consistência observável na construção e no crescimento de seu pensamento ao longo das décadas, contudo, é invariável, assim como a ousadia intelectual arrojada de suas contribuições ao debate público.
Particularmente relevante em sua trajetória pública foi a fundação do GRECE (acrônimo significando “grupo de pesquisa e estudos sobre a civilização europeia”) em 1968, ao lado de diversos nomes que viriam a se destacar no cenário cultural e político francês, como Dominique Venner, Giorgio Locchi, Jean-Claude Valla e Pierre Vial. Em entrevista à rádio France Inter em 1977, De Benoist declarou profeticamente: “Meu desejo é, de certa forma, criar uma nova direita.”
A ideia era, em suma, radicar um pensamento de direita independente e atido à realidade francesa, militando, nos apropriados termos de um slogan marxista alemão, na “longa marcha pelas instituições”, empenhando-se por espaços na academia, na mídia, na produção cultural e, claro, na política.
E, de fato, deste milieu surgiram os primeiros elementos do que se pode considerar a Nova Direita francesa, movimento que cresceu muito além do GRECE, cuja impressão atingiu em alguma medida mesmo figuras egressas da esquerda, a exemplo de Alain Soral, Dieudonné M’bala M’bala e, não menos importante, Christian Bouchet, fundador da Nouvelle Résistance, a quem a Nova Resistência deve bases tão fundamentais que escolheu refleti-las em seu próprio nome.
Não tenho aqui qualquer intenção de celebrar indiscriminadamente todo tipo de ideal que surgiu nos extremos do conjunto heterogêneo de grupos influenciados pela Nova Direita, mas, em se tratando de um breve prefácio a uma obra que não merece ser confundida com estes coletivos, tampouco vou desperdiçar palavras fazendo mais das mesmas denúncias. Confio na maturidade de nossos leitores.
Feita esta ressalva, destaco entre herdeiros parciais da Nova Direita nosso amigo internacional Alexander Dugin, cuja dívida com De Benoist é bem resumida pelas palavras de Bouchet em uma entrevista concedida à Breizh Info em 1997, um tanto antes da elaboração de suas obras mais conhecidas: o filósofo russo é “um Alain de Benoist com a audiência de um Éric Zemmour e a influência de um Bernard-Henri Lévy”.
Convém observar a atipicidade de como o projeto de entrismo cultural capitaneado por De Benoist ultrapassou em muito as fronteiras de seu país, e mesmo as da Europa, chegando aos confins do bolivarianismo e do nacionalismo árabe. Desvinculando-se dos limites impostos pelo liberalismo e pelo marxismo, uniram-se vozes internacionais em torno da necessidade da libertação intelectual, cultural e política de todos os povos predados pelo globalismo, a partir de uma consciência identitária que não permite restar inquestionado qualquer pressuposto ideológico apenas por este ser compreendido como consensual. Especialmente em se tratando de conceitos que pertencem às necessidades de determinado tempo e espaço.
Este é o caso da ideologia dos direitos humanos.
Se alguém por acaso estiver lendo este prefácio desavisado do conteúdo da obra, poderá ter franzido a testa assim que chegou à última frase. Outros leitores terão tido reações parecidas na primeira vez em que ouviram superficialmente o ponto central do autor, ou talvez tenham tido sua curiosidade atiçada pelo título do livro como se pela leitura de um paradoxo: como pode uma oposição aos direitos humanos ter um caráter emancipatório? Estas reações apenas reforçam a pertinência desta tese.
Na realidade, De Benoist logra demonstrar que a ideologia dos direitos humanos e a democracia, tão apregoadas como complementares, apresentam conflitos inerentes.
A exposição de sua tese é objetiva e detalhista, abrindo mão da acidez provocadora de muitos de seus outros ensaios. Há, na realidade, um esforço ativo do autor em demonstrar que nada há de marginal ou extremista em seus apontamentos: a maior parte do texto consiste em uma exposição de abrangência enciclopédica de todo o debate de peso quanto à natureza dos direitos humanos, tanto em sua fundamentação filosófica quanto em seus efeitos políticos.
Em corajosa síntese, De Benoist abraça argumentos de críticos tão diversificados quanto Karl Marx, Hannah Arendt, Alasdair MacIntyre, Jeremy Bentham, Hans Kelsen, Raymond Aron, Michel Villey, Ernest van den Haag, Marcel Gauchet, Régis Debray, Alain Renaut e François de Smet, apenas a título de exemplo. Isto é alcançado, ainda, sem quaisquer injustiças a pensadores também tão heterogêneos quanto Immanuel Kant, Norberto Bobbio, John Rawls, Jürgen Habermas, Kofi Annan, Guido Calogero, Francis Fukuyama, Ronald Dworkin, Ayn Rand, Chaïm Perelman, Javier Pérez de Cuellar, Pierre Manent, Michael Ignatieff, William F. Schulz e A. J. M. Milne, entre outros defensores filosóficos e políticos dos direitos humanos, que repetidas vezes chegam a ser cuidadosamente invertidos, a fim de que seus conflitos e suas críticas dentro de um paradigma de defesa da ideologia dos direitos humanos sirvam à tese central do livro.
Afinal, apesar de tanto esmero em reproduzir e confrontar os argumentos de outros autores, temos em mãos uma exposição verdadeiramente original.
Não pense, caro leitor, que há nesta obra ou neste prefácio qualquer espaço para a defesa da tirania, ou mesmo para propostas radicais de oposição categórica a discursos e instituições sob a bandeira da ideologia criticada. Pode ser conveniente, com nossas próprias ressalvas, dar atenção aos defensores dos direitos humanos enquanto recurso retórico, de forma a não deslegitimar reivindicações justas que escolham porventura este mecanismo. Não devemos, contudo, nos iludir no conforto da linguagem comum.
De Benoist inicia o texto com uma crítica familiar aos leitores de Heidegger:[1] a radicalidade da cisão entre sujeito e objeto como marca da modernidade ocidental. A crítica heideggeriana, frise-se, não consiste em um ataque fundamental a esta dicotomia, diferentemente, por exemplo, de críticas advindas do budismo. Há experiências subjetivas, o que se torna especialmente evidente em momentos de introspecção, assim como há uma realidade objetiva externa, que independe da subjetividade. Ocorre que há uma profunda integração entre estas esferas, sendo impossível pensar em sujeitos que existam à parte do mundo, assim como o mundo, mais do que um sinônimo informal para a realidade, melhor se define como o conjunto de toda a experiência humana.
Apoiando-se nesta ontologia, De Benoist aponta que a modernidade é definida por uma metafísica da subjetividade, que leva ao individualismo e, em última instância, ao relativismo. O extremo da objetividade, por sua vez, é o universalismo, que ficcionaliza as pessoas como indivíduos essencialmente iguais entre si.
A ideologia dos direitos humanos é tão adequada ao espírito de nossos tempos porque combina o relativismo, que valida tudo, com o universalismo, que valida todos. A indefinição da ideologia dos direitos humanos cria terreno fértil para uma humanidade que inflacionariamente inventa mais e mais novos direitos humanos, ao mesmo passo em que busca impô-los a todos os povos.
Na realidade, retomando Heidegger, a própria experimentação da relação entre sujeito e objeto depende de uma modalidade ainda mais profunda de experiência humana, que dá sentido à existência do homem no mundo. Eis o antídoto heideggeriano: o Dasein, também chamado “presença” ou “Ser-aí”, a depender da tradução utilizada.
A quarta teoria política, idealizada por Alexander Dugin[2] e fundamental para a construção de nosso comunitarismo à brasileira, percebe que a maioria das experiências políticas da modernidade pode se encaixar em três categorias básicas, cada qual com seus erros ontológicos.
A subjetividade em si, epitomizada na figura do indivíduo, subjaz o liberalismo, a “primeira teoria política”. A segunda teoria política, cuja principal ideologia abarcada é o marxismo-leninismo, retira a classe social do campo do objeto e a reivindica como sujeito político. Salvas as devidas proporções, a terceira teoria política, com sua expressão mais radical no nazifascismo, reivindica o Estado-Nação e a raça como sujeitos.
As três teorias se digladiaram pela hegemonia da Modernidade, até que o fim da Guerra Fria e o advento da pós-modernidade inaugurou uma fase de metamorfose do liberalismo. O liberalismo e suas ideologias anexas não são mais pensados como ideologias, e sim como um bom senso sobre a própria realidade das coisas. Pode-se dizer que o liberalismo se moveu da esfera subjetiva para a objetiva, e o que se espera é que a realidade do mundo, que pouco se importa com qualquer ideologia pronta em específico, tende a ser substituída pela virtualidade do mundo arquitetado por esta modalidade de pensamento, na terminologia duguiniana, pós-liberal.
Entre estas ideologias anexas, uma das mais marcadas é a dos direitos humanos. Desde que foram efetivamente concebidos na Europa Ocidental do século XVIII (friso para lembrar ao leitor que é uma ideologia com certidão de nascimento), seus teóricos buscam sustentá-los como autoevidentes, mas a batalha que gerações de liberais empreenderam por hegemonia encontrou dissenso organizado em demasia, impedindo o tom de certeza que esta ideologia requer. Lembremos que, até a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos eram preteridos na retórica dos estados em favor dos direitos civis,[3] e, mesmo sob a égide da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi necessário que esta fosse sucedida por dois diferentes pactos internacionais de direitos: um de direitos civis e políticos, que encontra reticência em governos comunistas; e um de direitos econômicos, sociais e culturais, até hoje não ratificado pelos Estados Unidos.
Apenas o fim da Guerra Fria permitiu que o aparato ideológico do globalismo tivesse uma direção programática sobre a qual pudesse ser ficcionalizado um consenso. É através da retórica dos direitos humanos, aponta De Benoist, que a civilização ocidental, hoje repleta de satélites políticos em todos os cantos do mundo, consegue se arrogar novamente a consciência de ser uma civilização central. Ao contrário do neocolonialismo (paródia das Cruzadas), não é mais o cristianismo a ideologia justificadora desta expansão, mas sim a religião secular dos direitos humanos.
Há ainda outra conveniência na centralidade dos direitos humanos. Por uma série de fenômenos melhor abordados em estudos dedicados à história do Direito,[4] a maior parte dos estados tem seus respectivos ordenamentos jurídicos em consonância com modelos ocidentais. Ao se elegerem os direitos humanos como coluna vertebral da organização política destas sociedades, isola-se o elemento jurídico, imposto “de cima para baixo” a partir de movimentos exógenos, idealizados por mentes histórica e culturalmente específicas. É preterido o elemento político, que, num sentido clássico, é organizado “de baixo para cima” a partir da organização dinâmica das sociedades.
Se os povos e as comunidades são múltiplos, suas combinações de particularidades culturais, econômicas e sociais tendem ao infinito, sendo lógico, portanto, que suas ideologias sejam também múltiplas. Não é surpreendente que a imposição de uma ideologia única pela modernidade liberal, portanto, se traduza em movimentos de supressão da política, em graus de agressividade que vão desde a deslegitimação de valores democraticamente justificados (como a legalização do aborto em sociedades cuja maioria se opõe ao mesmo) até conflitos armados, como a Guerra da Bósnia.[5]
“Teoricamente fundada em um princípio de tolerância, a ideologia dos direitos humanos se revela, assim, a portadora da mais extrema intolerância, da mais absoluta rejeição. A Declaração dos Direitos não é tanto uma declaração de amor quanto uma declaração de guerra.”[6]
Ainda que a luta pelos direitos humanos apareça no imaginário como uma luta pela democracia, De Benoist ressalta a seguinte antinomia: a democracia é uma doutrina política que busca restringir o que não é democrático (e em última instância o que não é político), enquanto os direitos humanos são uma doutrina jurídica e moral (que restringe o âmbito da política). De onde vem a legitimidade, afinal: da soberania do povo ou de determinada certeza moral?
O primeiro capítulo após a introdução faz uma investigação histórica de alguns conceitos posteriormente abordados, em especial os direitos humanos, o direito natural, o direito subjetivo, a liberdade e a justiça. Com o diálogo entre correntes de pensamento intertemporais e a identificação de momentos de ruptura como a cristianização do Império Romano, a Revolução Francesa e a Organização das Nações Unidas, a exposição de De Benoist já é suficiente para lançar ceticismo sobre conceitos amplamente aceitos como dados no debate contemporâneo.
Ora, como pode reivindicar atemporalidade e autoevidência um conceito tão particularmente ocidental e moderno quanto os direitos humanos?
“E claro que seria um tanto estranho que existissem tais direitos atribuídos aos seres humanos simplesmente qua seres humanos à luz do fato […] de que não há expressão em nenhuma linguagem antiga ou medieval que se traduza corretamente pela expressão ‘direito’ até fins da Idade Média: o conceito carece de meios de expressão em hebraico, grego, latim ou árabe, clássico ou medieval, antes de cerca do ano 1400, inexistente também no inglês antigo, ou mesmo no japonês até fins de meados do século XIX. Naturalmente, disso não se infere que não existam direitos naturais nem humanos; segue-se apenas que ninguém podia saber que existiam. E isso suscita pelo menos certas questões. Mas não precisamos nos preocupar em respondê-las, pois a verdade é simples: tais direitos não existem e acreditar neles é o mesmo que acreditar em bruxas e unicórnios.”[7]
No segundo capítulo, De Benoist percorre o debate sobre a fundamentação dos direitos humanos, tanto esclarecendo o absoluto dissenso teórico a este respeito que se desenha diante do leitor a ilusão de seu consenso prático. Percebe-se que as definições do que são os direitos humanos são vagas e pouco conciliáveis, tornando-se cada vez mais obscuros à medida em que se expandem. A natureza humana (o que isso significa?), a razão (de quem?), a fraternidade devida entre homens (por quê?) e a capacidade de adorar a Deus (qual?) estão entre os vários fundamentos elencados.
A crise é tão claramente perceptível que alguns dos principais teóricos dos direitos humanos sustentam explicitamente que se deve ignorar a tentação de fundamentá-los, sendo suficiente que sejam aceitos como uma espécie de contrato geral ou paradigma argumentativo. Esta apelação mostra não ser exagero a caracterização desta ideologia como uma verdadeira religião secular, na qual os direitos são uma espécie de deus ciumento da paz e da liberdade.
Embora seja possível intuir que a verve religiosa de De Benoist possa influenciar a adoção desta analogia pelo mesmo, é francamente um lugar-comum entre os críticos aos direitos humanos. Para examinar sua validade, convém recorrer à obra de Ninian Smith,[8] que não apenas enunciou as sete dimensões essenciais de uma religião como também utilizou esta teoria para diferenciar religiões seculares de outras ideologias. Estas dimensões são: prática-ritual, experimental-emocional, narrativa-mítica, doutrinária-filosófica, ética-legal, social-institucional e material.
As dimensões doutrinária-filosófica e ética-legal dispensam explicações, remetendo aos preceitos básicos da teoria dos direitos humanos e como estes foram primeiramente inculcados em defensores e simpatizantes, e então positivados em acordos internacionais e ordenamentos jurídicos domésticos. Seu aspecto narrativo-mítico se revela principalmente conforme defensores recontam a proeminência no mesmo como uma construção histórica de gradual descoberta dos direitos humanos (às vezes buscando raízes tão absurdamente longínquas quanto na Idade do Bronze), marcada por tratados e declarações que promoveram a efetivação de valores como a paz, a liberdade e a busca pela felicidade.[6] Há mitos para o passado e promessas para o futuro.
Conforme esta propaganda convence defensores e simpatizantes apelando para seus anseios pelas promessas dos direitos humanos, frequentemente fazendo com que críticas mais duras lhes provoquem revolta, revela-se uma dimensão experimental-emocional. É fácil discernir uma dimensão social-institucional, consubstanciada em organizações internacionais como a ONU, órgãos estatais como, no Brasil, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e mesmo a Assembleia Constituinte de 1988, e ainda por ONG’s, como a Anistia Internacional. Os aspectos práticos-rituais são pobres, mas se revelam nos símbolos, bordões e eventos cerimoniais destas próprias organizações.
Enfim, a religião dos direitos humanos se materializa no poder político das referidas organizações, no discurso fundamentador de políticas públicas (donde se incluem as guerras), e até no policiamento ideológico de críticos menos reservados, que se estende inclusive a autores mais convencionais como Alasdair MacIntyre.
Tendo-se em vista tanto a problemática de fundamentação da ideologia dos direitos humanos quanto a validade da analogia religiosa, é apropriadíssima a citação que De Benoist faz a Spinoza, de quando este caracterizava certa antropologia religiosa: “consequências sem premissas”.
O terceiro capítulo retoma a questão dos problemas tanto do universalismo quanto do relativismo enquanto marcas da ideologia dos direitos humanos, examinando suas implicações no tratamento da diversidade cultural.
A correlação entre universalismo e instrumentalização da ideologia para justificação do imperialismo e do globalismo é clara. Dizer que os direitos humanos deveriam ser reconhecidos em todo lugar sob a forma que a ideologia dos direitos humanos pressupõe traz questões como quem tem a autoridade de impor este ponto de vista, qual é a natureza desta autoridade, e o que garante a razoabilidade de seu discurso. As respostas destas questões não surgem em meio a debates acadêmicos, mas sim mediante demonstrações de poder fático, desde o estrangulamento econômico até a intervenção militar.
Todo universalismo tende ou à negligência, ou à dissolução das diferenças, e, nesta direção, a ideologia dos direitos humanos ignora as diferenças culturais, reforçando seu caráter de continuação da síndrome colonial. A escolha de grandes autoridades internacionais advindas de povos periféricos, como Kofi Annan e Boutros-Boutros Ghali, ambos curiosamente advindos de famílias tradicionalíssimas que se beneficiaram do colonialismo britânico na África, oculta que, por trás de um discurso universalista preocupado com a diversidade cultural, repousa a ideologia do fardo do homem branco.
Embora o relativismo pudesse, em tese, promover as reivindicações de sociedades periféricas, termina por coalescer ante um universalismo agressivo. Na realidade, os efeitos deste relativismo são mais vistos conforme forem menos ofensivos para os dogmas impostos por esta faceta universalista, emergindo na forma de pautas identitárias em diferentes graus de legitimidade: reivindicações de minorias oprimidas, separatismo, ou mesmo quaisquer caprichos pós-modernos traduzidos em reivindicações de direitos.
É simplesmente contraditório uma doutrina que se fundamenta na livre disposição dos indivíduos se oponha a práticas amplamente populares entre os grupos impugnados, buscando essencialmente proteger o indivíduo do grupo ao qual o mesmo pertence. Um multiculturalismo estritamente relativista não pode conviver em abstrato com denúncias a tradições culturais como violações aos direitos humanos.
A solução apresentada por De Benoist é agradavelmente consistente tanto com a quarta teoria política de Dugin quanto com a ética comunitarista de MacIntyre.
Em síntese, deve-se superar o multiculturalismo relativista em prol de um pluralismo focado nos valores cultivados pelas comunidades, que por sua vez têm seu melhor exercício na atividade política. Retirar esta problemática da esfera dos direitos não é uma panaceia, mas ao menos retira do Ocidente a função de polícia moral incontestável, detentora de uma tabela de valores contra a qual todo questionamento é sacrílego. Reabre-se a possibilidade da multipolaridade através do exercício da filosofia, que deve abrir mão de tentar criar práticas universais complexas que abstraem as particularidades de cada sociedade, e buscar, sim, providenciar ferramentas para que se possa predicar a teoria política da concretude social.
Isto não implica, frise-se, em niilismo moral. As respostas plurais podem nos parecer justamente contestáveis e mesmo condenáveis, podendo mesmo, em casos extremos, clamar por intervenção humanitária. Não há, contudo, como resolver esta contradição no campo da retórica e do moralismo e normativismo jurídicos.[9] Devemos entender que cada cultura tem suas respostas a como ir em uma direção preferível, e retomar a consciência de que estas respostas pertencem à política. Na verdade, nunca deixaram de pertencer: apenas nos permitimos ignorar que a batalha dos agentes de hegemonia global é política, não moral.
A ideia de uma justiça internacionalizada é sedutora, mas, na realidade, o Direito não é capaz de flutuar acima de uma comunidade política, necessariamente fazendo, sim, parte de uma, seja internacional ou doméstica. Mesmo porque o Direito só pode ser aplicado por um poder político. Caso contrário, o Direito necessariamente parecerá mais justo para aqueles poucos cujos valores são contemplados pela ideologia jurídica dominante, o que apenas indica que não será justo de forma alguma.
No quarto e último capítulo, o autor examina as desastrosas consequências políticas da ideologia dos direitos humanos, que creio já ter exemplificado fartamente por aqui, e apresenta propostas aptas a concorrer com a ideologia dos direitos humanos: o republicanismo clássico (correspondente, na tradição anglo-saxã, à teoria neorromana da liberdade civil) e o comunitarismo.
Como uma organização comunitarista com um amplo horizonte de preocupações intelectuais e acadêmicas, a Nova Resistência abraça a proposta de De Benoist. Enquanto proponente, desde o I Congresso Estadual da Nova Resistência do Rio de Janeiro em 2019, da necessidade de se fundarem as bases de uma teorização jurídica verdadeiramente dissidente e multipolar, inspirada pela quarta teoria política, expresso minha esperança de que este livro represente mais um passo nesta direção.
Encerro este prefácio, portanto, enunciando os seis pressupostos de uma metateoria jurídica comunitarista, como enunciados no II Congresso Nacional da Nova Resistência, celebrado em outubro de 2021 em Cruzeiro, São Paulo. Trago estas pontuações com a sincera esperança de dar um ponto de partida para que nossos leitores dados ao pensamento jurídico reflitam, debatam e, quem sabe, construam novas propostas.
- A metateoria jurídica comunitarista deve ter por fonte o Dasein, não teorias universalistas, legalistas ou que partam de tradições específicas.
- A metateoria jurídica comunitarista deve ver o Direito de forma integral, contemplando o fenômeno do Direito em seus aspectos fáticos, axiológicos e normativos.
- A metateoria jurídica comunitarista deve contemplar o pluralismo jurídico, preocupando-se com a legitimação de manifestações saudáveis do Direito Vivo e com a compatibilização de ordens jurídicas sobrepostas.
- A metateoria jurídica comunitarista deve ser sincrética, pragmática e científica, porque o Direito é uma ciência pragmática e sincrética por natureza.
- A metateoria jurídica comunitarista deve ser aberta e democrática, buscando talvez em alguns aspectos uma linguagem crítica unificada, mas não um sistema universal.
- A metateoria jurídica comunitarista deve ser antimoderna e multipolar, habilitada a questionar e superar toda suposição jurídica que prenda os sujeitos à modernidade liberal.
Uma boa leitura a todos.
*Para apoiar o lançamento da obra e garantir uma cópia, usem o link: https://www.catarse.me/para_alem_dos_direitos_humanos_e_globalizacao_infeliz
[1] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 10.ª ed. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2015.
[2] DUGIN, Alexander. A Quarta Teoria Política. Tradução de Raphael Machado. Caxias do Sul: Ars Regia, 2021.
[3] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Schwarcz, 1991, p. 300-26.
[4] Para uma leitura crítica, cf. SCHMIDHAUSER, John R. Legal Imperialism: Its Enduring Impact on Colonial and Post-Colonial Judicial Systems. International Political Science Review, v. 13, n. 3, p. 321-34, jul. 1992.
[5] Longe de negar os crimes de guerra cometidos por sérvios e aliados, aponto como a Guerra da Bósnia é um exemplo clássico de como o discurso dos direitos humanos vem a legitimar jogos políticos ocultos. Os interesses ocidentais estavam claramente alinhados com uma derrota sérvia na guerra, de forma que os crimes destes foram enfatizados, e, os de seus adversários, ignorados, a fim de justificar agressões da OTAN que aceleraram o fim do conflito e deram resultado relativamente vantajoso. Para uma leitura imparcial, cf. WEISBURD, A. Mark. The Emptiness of the Concept of Jus Cogens, as Illustrated by the War in Bosnia-Herzegovina. Michigan Journal of International Law, Ann Arbor (MI), v. 17, n. 1, p. 1-51, set./dez. de 1995.
[6] DE BENOIST, Alain. Para Além dos Direitos Humanos: Defender as Liberdades. Tradução de Raphael Machado. Caxias do Sul: Ars Regia, 2022.
[7] MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude: Um estudo em teoria moral. 2.ª ed. Tradução de Jussara Simões. Bauru (SP): EDUSC, 2001, p. 126-7.
[8] SMART, Ninian. The World’s Religions. 2.ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 10-28.
[9] Para um clássico contemporâneo deste tipo de propaganda apelativa, cf. PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Tradução de Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[10] Faço aqui referência à teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale, segundo a qual o Direito tem uma dimensão fática (cujo exagero responde ao sociologismo jurídico), uma axiológica (que corresponde ao moralismo jurídico) e uma normativa (que corresponde ao normativismo abstrato). O fenômeno jurídico apenas pode ser compreendido integralmente com uma harmonização destas três dimensões. Cf. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994.