Faleceu em Moscou, há uma semana, o jornalista anti-imperialista Manuel Ochsenreiter, a principal voz alemã contemporânea em defesa da multipolaridade e da autonomia dos povos do mundo. Em vida, ele foi uma peça fundamental da ponte entre Rússia e Alemanha, bem como de seu país com Síria, Irã e outros países do Eixo da Resistência.
Recebi a notícia na tarde de dia 18, Manuel Ochsenreiter tinha falecido em Moscou vítima de enfarte após vários dias em coma, apanhou-me de surpresa embora estivesse ciente que já em 2014 sofrera um enfarte quando estivera na Síria. Tinha-se mudado a título permanente para Moscou em 2019, mas dadas as facilidades do mundo digital mantinha-se ainda como chefe de redação da “Zuerst!”, revista mensal que tem tanto de polêmica quanto de popularidade.
Confesso que por momentos me esqueci de quando contatei com o Manuel pela primeira vez, tive que recorrer ao arquivo morto do limbo do correio electrónico para recordar que a nossa primeira interação fora em 2009, bastante intensa durante alguns anos por interesses comuns, tanto jornalísticos como geopolíticos, sendo que ambos fundamos clubes de pensadores quase em paralelo, eu o Instituto de Altos Estudos em Geopolítica e Ciências Auxiliares e ele o Centro Alemão de Estudos Eurásicos, ambos apostados em difundir ideais anti-imperialistas e de maior proximidade para com o Leste, África, Ásia e a América do Sul.
Conheci muita gente má, verdadeiramente má no sentido mais hollywoodesco do termo, mas também conheci algumas pessoas muito boas na minha anterior vida, mais no estrangeiro do que cá para vos ser sincero, e Manuel Ochsenreiter foi uma delas.
Jovem Liberdade
Manuel Ochsenreiter nasceu a 18 de Maio de 1976, de mãe colombiana e pai alemão, tendo dado os primeiros passos no jornalismo inconformista em 1994 no semanário “Junge Freiheit”, na altura o título mais popular da Nova Direita Alemã, com nítida inspiração na Nova Direita Francesa, tendo trabalhado como repórter em várias seções temáticas até 2004.
Em 2004 abandona o “Junge Freiheit”, já em bafienta deriva liberal-conservadora, e torna-se chefe de redação da “DMZ”, uma revista de temática militar editada pelo polêmico editor Dietmar Munier, frequentemente retratado como sendo de direita radical e ultraconservadora no mundo a preto e branco em que vivemos atualmente. Mantém-se na revista de temática militar até 2010.
Em 2010 junta-se a Günther Deschner e, na mesma casa editorial, lançam a “Zuerst!” como revista mensal de grande informação e ampla tiragem, sendo distribuída na Alemanha, na Áustria, na Suíça, no Luxemburgo e ainda no norte de Itália, na província de Bolzano, região onde a língua predominante é o alemão. Em 2011 assume o cargo de chefe de redação da mesma, cargo que manteve até à sua morte.
A Paixão Multipolar
Ochsenreiter era um homem brilhante, daqueles raros que conseguem pensar fora da caixa, vislumbrar o aspecto mais amplo da diminuta realidade em que vivemos, como tal não seria de esperar outra coisa que a sua adesão à geopolítica na defesa de um mundo multipolar. Ao contrário de mim, cujo temperamento incendiário me leva incessantemente a queimar pontes, Manuel era um construtor de pontes e, para vos ser sincero, uma raridade entre alemães uma vez que foi o alemão mais bem humorado e divertido que tive a honra de conhecer. Tanto que no seu ciclo pessoal convivia alegremente com comunistas, anarquistas e, sim, com fascistas. O suficiente para que na comunicação social da corrente dominante, do “sistema”, passe à eternidade como infrequentável e pestífero. Quando passei pela redação do semanário “O Diabo” acabei por o entrevistar e por o persuadir a assinar algumas peças, as quais foram traduzidas por mim.
Aquando da ocupação da Crimeia falou comigo, queria saber se seria possível, estando eu no Partido Socialista, contatar a Ana Gomes para esta integrar uma comitiva de eurodeputados que iam participar como observadores internacionais no referendo popular. Estava otimista e animado, pois na sua personalidade afável e construtora de pontes convidara eurodeputados do Die Linke (o equivalente ao BE alemão) e do AfD (na altura a abandonar o liberalismo e a dar os primeiros passos no populismo) e ambos aceitaram integrar a comitiva. Alertei-o que por mais dissidente que a Ana Gomes parecesse nas notícias (recordai os aviões da CIA e as cruzadas anticorrupção), em questões de geopolítica nada havia a esperar dela pois acreditava piamente que Rússia, Venezuela, China, Síria, enfim, todas as potências que fazem frente aos EUA, são verdadeiros vilões. Dada a irrelevância geopolítica de Portugal, o desânimo não foi dos maiores.
Na Linha da Frente
Ao contrário do que seria de esperar dado o seu percurso em publicações de comentário político e cultural, Ochsenreiter não se ficou pelas redações e viajou bastante pelo Oriente Médio e Leste europeu, um autêntico repórter de guerra entre milícias xiitas, soldados sírios, separatistas de Donetsk e Lugansk, Alto Carabaque, Crimeia, Transnístria, Kosovo, ia a todas. Fotograva, entrevistava, reportava o que testemunhava em campo.
A sua perspectiva geopolítica, avessa ao reducionismo da pequena política nacional, levou-o a ser comentador frequente tanto na PressTV como na RT durante anos. Havia sempre que analisar quem sairia beneficiado com determinada sanção internacional, com uma qualquer guerra, com laços cortados entre nações. É um verdadeiro incômodo quem pensa assim, indo ao cerne da questão, não se deixando toldar por paixões, ódios e preconceitos políticos, analisando cada coisa no seu lugar.
Estou ciente que ao recordar Manuel Ochsenreiter sem empregar os insultos que a comunicação social normalmente lhe dirige não irei angariar grandes amigos, mas pese embora toda essa pequena política o Manuel era um homem de grande visão, um genuíno apoiante de uma perspectiva multipolar, do mundo por vir no qual Venezuela, Rússia, China, Índia, Irã e até a Coreia do Norte e Cuba deixarão de ser vistas como Estados párias, mas como nações e povos cidadãos de pleno direito no mundo pós-americano que já se vislumbra.
Como recordou a “Zuerst!” no seu obituário: o nosso único consolo por o ver partir tão cedo, aos 45 anos, é que ao ter sido uma alma tão irrequieta é verdade que partiu novo, mas na maratona que foi a sua vida viveu muitas vidas. Até sempre, meu amigo!
Fonte: Pravda