Afeganistão: uma linha do tempo geopolítica

O Afeganistão, ao longo das últimas décadas, tem sido um espelho bastante claro das vicissitudes da geopolítica mundial. Se nos anos 80 a saída das tropas soviéticas do Afeganistão foi uma imagem do declínio da ordem bipolar e o surgimento de uma nova ordem unipolar centrada nos EUA, a atual saída das tropas estadunidenses desse país representa o naufrágio da ordem unipolar e o iminente surgimento de um novo cenário.

A tomada do poder pelo Talibã no Afeganistão e a saída vergonhosa dos americanos e de seus aliados requer um estudo mais amplo das mudanças fundamentais na geopolítica mundial. O Afeganistão tem sido um indicador dessas mudanças ao longo dos últimos 50 anos. As fraturas na arquitetura global do mundo estiveram associadas a ele. É claro, o Afeganistão não foi ele próprio a causa das transformações geoestratégicas, mas antes uma tela em que, de forma mais clara que em qualquer outro lugar, as mudanças fundamentais na ordem mundial foram refletidas.

Fundamentalismo islâmico em um mundo bipolar

Vamos começar pela Guerra Fria e o papel desempenhado pelo fator do fundamentalismo Islâmico (principalmente sunita, salafista) nela. O fundamentalismo sunita (tanto o Wahhabismo quanto várias outras formas paralelas), em contraste com o mais complexo e controverso fundamentalismo xiita, serviu ao ocidente como oposição a regimes esquerdistas, socialistas, ou nacionalistas seculares, e, mais frequentemente, regimes pró-Soviéticos. Como um fenômeno geopolítico, o fundamentalismo Islâmico era parte da estratégia Atlantista, servindo ao Poder Marítimo contra a União Soviética, que era o posto principal do Poder Terrestre.

O Afeganistão era um elo dessa estratégia geopolítica. O ramo Afegão de radicalismo Islâmico veio aos holofotes após a invasão soviética do Afeganistão em 1979. Nesse época, uma guerra civil já havia estourado no Afeganistão, onde o Ocidente e seus aliados incondicionais na época – Paquistão e Arábia Saudita – apoiaram extremistas Islâmicos contra os poderes seculares moderados inclinados a se alinhar com Moscou. Não havia liberais ou comunistas de fato nesse cenário, mas havia um confronto entre Ocidente e Oriente. E foram os fundamentalistas islâmicos que falaram em nome do Ocidente.

Quando tropas soviéticas entraram no Afeganistão, o Ocidente se tornou ainda mais ativo em seu apoio a grupos radicais Islâmicos contra os “ocupantes ateístas”. A CIA levou Osama bin Laden e a Al-Qaeda ao Afeganistão, algo que foi abertamente encorajado por Zbigniew Brzezinski como forma de combater os comunistas.

Nós postergamos esse período dos anos 80 na linha do tempo geopolítica: O Afeganistão nos anos 80 era um campo de confronto entre dois polos. Líderes seculares contavam com Moscou, e os mujahedines com Washington.

A retirada das tropas soviéticas do Afeganistão por Gorbachev significou o fim da Guerra Fria e a derrota da URSS. A captura de Kabul por facções mujahedin rivais e a execução do Presidente Najibullah em 1996 – apesar do caos e da anarquia – significaram uma vitória para o Ocidente. A derrota na Guerra do Afeganistão não foi a causa do colapso da URSS. Mas foi um sintoma do fim da ordem mundial bipolar.

Radicais islâmicos em um mundo unipolar: desnecessários e perigosos

A segunda década geopolítica em nossa linha do tempo cai nos anos 90. Nessa época, uma ordem mundial unipolar ou momento unipolar foi estabelecido (C. Krauthammer). A URSS está se desintegrando, e as forças islâmicas estão ativamente tentando operar nas repúblicas ex-soviéticas – principalmente no Tajiquistão e no Uzbequistão. A Federação Russa também está se transformando em uma zona de guerra para grupos radicais islâmicos pró-americanos. Antes de tudo, isso diz respeito à Chechênia e ao Cáucaso Norte. O Ocidente continua a usar seus aliados para atacar o polo Eurasiático. Em um mundo unipolar, o Ocidente – agora o único polo – põe fim (de forma aparentemente irreversível, na época) a um adversário derrotado por meio de métodos antigos.

No próprio Afeganistão, nos anos 90, a ascensão do Talibã começa. Essa não é simplesmente uma das direções do fundamentalismo, mas é também a força que une o maior grupo étnico do Afeganistão – as tribos nomádicas Pashtun, descendentes dos nômades indo-europeus da Eurásia. Sua ideologia é uma das áreas do Salafismo, próxima ao Wahhabismo e à Al-Qaeda. Outras forças opõe o Talisbã – principalmente sunitas, mas etnicamente excelentes – indo-europeus, tajiques, e uzbeques túrquicos, como também um povo misto de língua irânica – os Hazaras xiitas. Com o avanço do Talibã, seus oponentes – principalmente a Aliança Norte – recua. Os americanos apoiam ambos, mas a Aliança Norte está procurando apoio pragmático nos inimigos de ontem – os russos.

Em 1996, o Talibã tomou Kabul. Os EUA estão tentando melhorar as relações com o Talibã e fechar um tratado para a construção de um gasoduto trans-afegão.

Durante os anos 90, a Rússia, o antigo polo inimigo do Ocidente no mundo bipolar, está se enfraquecendo constantemente. Com as condições de crescente unipolaridade, o radicalismo islâmico, alimentado pelo Ocidente, se torna um fardo desagradável, cada vez menos revelante nas novas condições. No entanto, a inércia do fundamentalismo islâmico é tão grande que ele não vai desaparecer após a primeira ordem vinda de Washington. Ademais, seus sucessos estão forçando líderes de países islâmicos a abraçar caminhos políticos independentes. Na ausência da URSS, fundamentalistas islâmicos começam a ver a si mesmos como uma força independente, e na ausência de um velho inimigo (regimes de esquerda pró-Soviéticos), voltam sua agressão contra o mestre de outrora.

Rebelião contra o mestre

A segunda década de nossa linha do tempo termina em 9 de Setembro de 2001, com um ataque terrorista realizado em Nova Iorque e no Pentágono. A responsável pelo ataque é a Al-Qaeda, cujo líder está nas mãos do Talibã no Afeganistão. Mais uma vez, o Afeganistão mostra ser uma imagem de uma mudança radical na ordem mundial. Mas agora o polo unipolar tem como inimigo extraterritorial o fundamentalismo islâmico, que teoricamente pode estar em qualquer lugar, e portanto, os EUA, como o único polo, tem todos os motivos para levar adiante um ato de intervenção direta contra esse inimigo onipresente e que não está preso a nenhum lugar específico. Para isso, o Ocidente não precisa pedir a permissão de ninguém. A Rússia nessa época ainda parece estar enfraquecendo e se desintegrando progressivamente.

Desse ponto em diante, os neocons americanos declaram o fundamentalismo islâmico – o aliado do Ocidente no período anterior – como seu inimigo principal. Uma consequência direta disso é

⦁ A invasão ao Afeganistão realizada pelos EUA e aliados (sob o pretexto de capturar Osama bin Laden e castigar o Talibã por tê-lo abrigado),
⦁ A guerra no Iraque e a derrubada de Saddam Hussein,
⦁ O surgimento do projeto do “Grande Oriente Médio”, que pressupõe a desestabilização dessa região inteira com a alteração de fronteiras e zonas de influência.

A Rússia, então, não intervém para impedir a invasão ianque ao Afeganistão.

É assim que começa a história de 20 anos da presença das Forças Armadas dos EUA no Afeganistão, história essa que acabou praticamente ontem.

Afeganistão e o declínio do Império

O que aconteceu durante esses 20 anos no mundo e em seu espelho – no Afeganistão? Durante esse tempo, o mundo unipolar, se não entrou em colapso, no mínimo entrou no estágio de desintegração acelerada. Sob Putin, a Rússia fortaleceu tanto sua soberania que conseguiu superar as ameaças internas de separatismo e desestabilização, além de retornar como uma força independente na arena mundial (incluindo no Oriente Médio – Síria, Líbia e, em parte, Iraque).

A China, que parecia estar completamente absorvida pela globalização, tem provado ser um jogador extremamente habilidoso e, passo a passo, tem se tornado uma potência econômica gigante com sua própria agenda. A China de Xi Jingping é um Império Chinês restaurado, não uma periferia asiática controlada externamente pelo Ocidente (como parecia ser nos anos 90).

Nesse momento, o status do fundamentalismo islâmico também mudou. Cada vez menos frequentemente os EUA usaram ele contra seus oponentes regionais (apesar de algumas vezes ainda usarem – na Síria, Líbia, etc.), e cada vez mais frequentemente surgem sentimentos de anti-americanismo em meio aos próprios fundamentalistas. De fato, a Rússia deixou de ser uma fortaleza da ideologia comunista ateísta e em vez disso adere a valores conservadores, enquanto os EUA e o Ocidente continuam a insistir em liberalismo, individualismo, e LGBT+, fazendo disso tudo a base de sua ideologia. O Irã e a Turquia tem se aproximado de Moscou em muitas situações. O Paquistão formou uma parceria forte com a China. E a presença americana já não lhes interessava – nem no Oriente Médio, nem na Ásia Central.

A vitória completa do Talibã e a saída dos americanos significa o fim do mundo unipolar e da Pax Americana. Assim como em 1989 a saída de tropas soviéticas do Afeganistão significou o fim do mundo bipolar.

Monitorando o futuro

O que vai acontecer com o Afeganistão na próxima década? Isso é o que mais interessa. Em uma configuração unipolar, os EUA não puderam manter controle sobre esse território geopoliticamente crucial. Isso é um fato irreversível. Agora tudo depende muito de vermos ou não o início de uma reação em cadeia de desintegração dos EUA e da OTAN, similar ao colapso do campo socialista, ou se os EUA vão continuar mantendo um potencial crítico o suficiente para permanecer, talvez não como o único, mas ainda como o jogador número um em uma escala global.

Se o Ocidente colapsar, então nós vamos viver em um mundo diferente, cujos parâmetros são difíceis até de imaginar, quanto mais de prever. Se ele colapsar, então nós pensaremos sobre isso. É mais provável que ele não caia tão cedo (apesar de que, quem sabe – o Afeganistão é um espelho da geopolítica mundial, e ele não mente). Mas nós vamos prosseguir a partir do fato de que, por enquanto, os EUA e a OTAN permanecerão as autoridades chave, mas já em novas condições, isso é, de multipolaridade.

Nesse caso, eles têm apenas uma estratégia possível no Afeganistão. Ela é descrita de forma bastante realista na 8ª temporada da série americana de espionagem “Homeland”. Lá, de acordo com o cenário, o Talibã se aproxima de Kabul, e o governo fantoche pró-americano parte em retirada. Contra os arrogantes e paranoicos imperialistas neocon em Washington, o representante do realismo nas Relações Internacionais (o dublê cinematográfico de Henry Kissinger), Saul Berenson, insiste em negociar com o Talibã e tentar redirecioná-los contra a Rússia. Isso é, tudo que resta para Washington é voltar à velha estratégia que foi testada nas condições da Guerra Fria. “Se é impossível derrotar o fundamentalismo Islâmico, é preciso redirecioná-lo contra nossos próprios inimigos – novos e, ao mesmo tempo, antigos”. E acima de tudo, contra a Rússia e o espaço Eurasiático.

Essa será a questão Afegã na próxima década.

Afeganistão: um desafio para a Rússia

O que a Rússia deveria fazer? De um ponto de vista geopolítico, a conclusão é inequívoca: o principal é não deixar que o plano americano (razoável e lógico para eles em sua tentativa de manter sua hegemonia) se concretize. Para isso, é claro, é necessário estabelecer relações com o atual Afeganistão, o que está prestes a ser feito. Os primeiros passos nas negociações com o Talibã já foram tomados pelo Ministério de Relações Exteriores da Rússia. E essa é uma jogada bem esperta.

Além disso, é necessário intensificar as políticas na Ásia Central, contando com outros centros de poder em busca de aumentar sua própria soberania.

Falo principalmente da China, que tem interesse na multipolaridade e especialmente no espaço Afegão, que é parte do território necessário para o projeto One Belt One Road.

Mais adiante, é necessário aproximar nossas posições do Paquistão, que está se tornando mais e mais anti-americano a cada dia.

O Irã, devido à sua proximidade e influência sobre os cazares (e não somente eles), pode desempenhar um papel significante no assentamento Afegão.

A Rússia deve, com certeza, proteger e integrar mais Tajiquistão, Uzbequistão, e Quirguistão nos planos estratégico-militares de seus aliados, assim como o Turcomenistão, que está em letargia geopolítica.

Se o Talibã não rejeitar violentamente os turcos por conta de sua participação na OTAN, então discussões devem ser estabelecidas com Ankara.

E talvez o mais importante seja convencer os países do Golfo, e acima de todos a Arábia Saudita e o Egito, a recusarem o papel de um mero instrumento submisso nas mãos do evanescente Império Americano, que está à beira da queda.

É claro, é desejável silenciar o ruído semântico de agentes estrangeiros abertos e ocultos dentro da própria Rússia, que vão começar agora a pôr em prática as ordens americanas de diferentes formas. Em essência, tentarão impedir Moscou de implementar uma estratégia geopolítica efetiva no Afeganistão e perturbarão a criação de um mundo multipolar.

Nós veremos a imagem do futuro e as principais características da nova ordem mundial em um futuro bem próximo. E tudo novamente está refletido em um mesmo lugar – o Afeganistão.

Fonte: Katehon

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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