O individualismo típico da modernidade também está presente na relação das pessoas com a arte. O argumento de “separar o artista da obra”, algo não tão simples assim, muitas vezes, é sinal desse sintoma. Na obra estão a alma, a essência e a vivência do artista, ou seja, uma separação completa é impossível, a criação não nasceu ex nihilo, ela carrega algo daquele que a plasmou. É óbvio que uma interpretação própria não é algo errado ou que estejamos desencorajando, as ideias estão no mundo para serem usadas e também pertencem àqueles que as recebem e interpretam. Mas há um limite, uma barreira hermenêutica presente na presença do artista na obra. Há um ponto extremo que podemos chegar sem deturpar a ideia.
Um dos artistas brasileiros mais vitimados por essas deturpações é o gênio mineiro João Guimarães Rosa. Ao observarmos boa parte das análises de sua obra, principalmente do romance Grande Sertão: Veredas, vem à lume a completa incapacidade, na maioria dos críticos, de observar algo com um mínimo olhar metafísico e transcendente, isso vindo de pretensos intelectuais oriundos de ambos os espectros político-ideológicos hegemônicos. Ou seja, tanto direita quanto esquerda demonstram mais uma falha em suas já imensas listas de fracassos: o olhar extremamente limitado perante os signos do numinoso.
Guimarães Rosa insistiu sempre sobre o valor metafísico de seus escritos. Uma pesquisa sobre quais livros o cordisburguense mantinha em sua biblioteca e quais eram algumas de suas influências intelectuais é algo bastante revelador. Nomes como Plotino, Ruysbroeck, Guénon, Eckhart, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz dizem muito sobre a formação de Rosa, que, além disso, era profundo estudioso de temas como Alquimia, Hermetismo, Taoísmo e Zen-Budismo.
É comum que se critique a interpretação mística da obra rosiana, com o argumento de que seria um exagero. Bem, vejamos o que o próprio homem disse numa carta para seu tradutor italiano:
Sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estrito e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez como o Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, pertença eu a todas. E especulativo demais. Daí todas as minhas constantes preocupações religiosas, metafísicas, embeberem meus livros. Talvez meio existencialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neoplatônico (outros me carimbam disto) e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou. […] Ora, você já notou, decerto, como eu, meu livro, em essência, são ‘anti-intelectuais’ – defendem o primado da intuição, da revelação, da inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da Inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e os Upanixades, com os evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente”.
Um comentário como esse invalida completamente interpretações incorretas sobre a obra do mineiro, que confirma o profundo cariz metafísico de suas criações, além de demonstrar que não são exageradas as exegeses místicas de Grande Sertão: Veredas. Vale destacar, também, a firme posição contra a supremacia da razão, brilhantemente nomeada de “megera cartesiana”, que nos permite considerar Rosa como um autor que, de certa forma, buscou criar além do pensamento típico do homem urbano e moderno, ou seja, além das limitações de um pensamento nascido apenas do Iluminismo. Ao negar a ruptura entre homem e mundo (dessacralização do mundo), Rosa busca um retorno intuitivo à tradição, que conduziria até as primordiais fontes espirituais pré-modernas. Isso também serve para entendermos a incapacidade hermenêutica de certas vertentes de pensamento, justamente aquelas nascidas do ventre racionalista da megera cartesiana, de nos apresentar interpretações minimamente profundas e satisfatórias das páginas da obra-prima do mineiro.
As besteiras são escritas tanto por críticos de esquerda e direita. Os primeiros, que outrora tinham uma interpretação exageradamente focada no aspecto social da obra, hoje em dia, na encarnação de new left, provando que tudo pode piorar, contaminam Grande Sertão: Veredas com suas absurdas teorias pequeno-burguesas sobre gêneros. Toda a profundíssima simbologia de Diadorim é reduzida apenas à patacoadas de mulheres que se sentem homens ou algo assim, numa mistura de instrumentalização ideológica desonesta, degeneração moral e estupidez interpretativa.
Diadorim representa o mito do andrógino primordial, que remonta a Platão, não besteiras materialistas pós-modernas. É também, de certa forma, a ibero-moura donzela guerreira, rediviva no sertão mineiro, a Donzela Teodora (lembremos que o nome verdadeiro de Diadorim era Deodorina) do Brasil Profundo. Grande Sertão: Veredas é um grande mistério iniciático transformado em epopeia rural. Riobaldo, iniciado pelo hierofante Diadorim (que vive apenas como agente do destino, imune aos prazeres e males do mundo), passa por uma série de mortes simbólicas e renasce como Tatarana e Urutu-Branco. Ao acompanharmos o velho Riobaldo revistando sua juventude, em busca de respostas, também saímos transformados dessa odisseia pelo mágico interior brasileiro e para os interiores do nosso sertão interno, da nossa alma. Para o leitor que se permite, a jornada de Riobaldo, com todas as suas perguntas, também se torna nossa travessia. Sertanejo (homem) e sertão (natureza) não são aqui dois entes opostos, são aspectos complementares de um todo, que Guimarães Rosa une com o intuito de encerrar a separação kantiana entre ser humano e mundo. As pontes para o transcendente são erguidas uma vez mais, a tirania da racionalidade é negada. Nas palavras do próprio autor:
Para entender a brasilidade, é importante, antes de tudo, aprender a reconhecer que a sabedoria é algo distinto da lógica”.
O sertão não é apenas um pano de fundo geográfico, nem tampouco um elemento social, é a manifestação coletiva do Espírito de seu povo. Não é nenhum exagero dizer que o único romance de Rosa é o equivalente sertanejo às Metamorfoses ovidianas.
É curioso lembrar que a primeira revista de cultura que, em 1957, acolheu e resenhou Grande Sertão: Veredas, foi a Diálogo. Ela não era uma publicação literária, mas sim filosófica, de vertente heideggeriana, publicada pelo filósofo Vicente Ferreira da Silva e por sua esposa, a poetisa Dora Ferreira da Silva.
Os críticos de direita apresentam interpretações tão estúpidas quanto os de esquerda. Alguns apontam como degeneração a simbologia andrógina de Diadorim, chegando até mesmo a interpretar o esoterismo da obra como mero homossexualismo vulgar. Nesse ponto, esquerda e direita não diferem tanto na estupidez hermenêutica, a única diferença é que enquanto um grupo louva as análises incorretas, o outro as condena. Ambos demonstram o quanto são escravos arrogantes da razão.
Além disso, alguns supostos conservadores criticam o experimentalismo do texto de Guimarães Rosa, seu uso extremo de neologismos. Alegam que tudo não passa de malabarismos estéticos vazios, arte por arte. Por mais que não seja surpreendente que hordas de usuários de gravata borboleta se escandalizem com tudo que seja minimamente vanguardista e revolucionário, é interessante que olhemos com mais atenção para o estilo do autor mineiro.
Rosa se baseou nos falares do sertanejo, bebeu na fonte da tradição popular, para criar algo ao mesmo tempo, arcaico, inovador e metafísico. Seu estilo, que se revela como uma hierofania para o leitor, é a expressão daquela luta contra a megera cartesiana, o que demonstra o caráter de tradicionalista revolucionário do autor.
Heidegger, em sua última fase, escreveu sobre como a linguagem dominante no pensamento moderno ocidental cria uma forma de pensamento preso à uma obrigatoriedade lógica. Pensamento esse que é o declínio e a coisificação da linguagem e de todas as possibilidades humanas. No segundo prefácio de Tutaméia, Guimarães Rosa afirma que o povo e os poetas têm o direito de criar novas palavras. O homem moderno vive num mundo protocolar, de pensamentos materialistas, instantâneos e rasos, não anseia poesia e vivacidade na linguagem. A fala é apenas ferramenta da lógica e da pressa, não mais o eco da alma. Já o simples homem rural ainda não foi totalmente escravizado pelo pensamento lógico, sua linguagem ainda comunica um mundo de crendices populares, misticismo e lendas de um mundo que ainda é mágico. O artista deve beber nessa fonte, pois, somente assim, transcendendo as limitações da linguagem moderna, poderá expressar o verdadeiro Ser. Rosa empreende aquele retorno, já citado, até as fontes da sabedoria ancestral, através da linguagem, tirando de cima dela séculos de sujeira racionalista que a petrificaram na superfície de suas funções. A destruição da Ontologia, proposta na Filosofia por Heidegger, que buscava um recomeço através do retorno às funções primordiais da sabedoria, tem um análogo na revolução literária do autor mineiro. Revoluções de retorno à tradições esquecidas.
Todo autor que reedifica a capacidade atuante da linguagem tem a possibilidade de espalhar ideias realmente transformadoras da realidade. Está muito claro para nós que a transformação buscada por João Guimarães Rosa era, basicamente, o fim da supremacia da separação cartesiana entre homem e mundo sacralizado. Novamente, deixemos que o mineiro fale por si:
Espero uma literatura tão ilógica como a minha, que transforme o Cosmo num Sertão no qual a única realidade seja o inacreditável”.