Dom Quixote é o mito perene de nosso tempo. Nos encontramos no crepúsculo da era Moderna, assim como Quixote esteve no crepúsculo do feudalismo. O Dom foi inspirado pelas histórias românticas que inspiraram seus ancestrais, mas em vez de tornar-se um cavaleiro heroico, ele fez o tolo. O espírito que animou o passado e colocou seus antepassados sobre uma realidade que eles percebiam como seu domínio, mas o Dom chegou com séculos de atraso, e o mundo lhe era irreconhecível. Seu encontro com o mundo foi um retiro elaborado ao seu ideal fantástico, colocando seu espírito e a realidade de seu tempo em contenda um com o outro. Seu mundo foi eclipsado por um mundo que não tinha lugar para ele; a realidade não fazia justiça à sua imaginação. Suas tentativas fracassadas de remodelá-lo como algo igual ao seu espírito são a fonte de muito humor no romance, mas conforme esta condição se forma no nosso mundo atual, a comédia é transformada em algo sombrio, com riscos muito maiores.
Dom Quixote inicia com nosso Dom apertando o cinto ao redor de sua cintura continuamente diminuta, seu estado decadente e descuidado em pousio, seus equipamentos de guerra enferrujando e sem serventia, seu cavalo emaciado e paralisado. Isso não nos chama a atenção para equivalentes modernos? Crianças desamparadas da epidemia opioide vagando pelas ruas de centros urbanos e cidadezinhas rurais, fábricas enferrujadas e cambaleantes manchando a paisagem desde Nova Iorque até o Centro-oeste, subindo até Michigan? Minas abandonadas na Virgínia Ocidental, celeiros desequilibrados e caídos pontuando o cenário do interior? Como o Dom, nos encontramos no meio desse estado decrépito cercado pela mídia através da qual escapamos, e que eventualmente suplanta a realidade para muitos. Para ele eram os livros, para nós, televisão e internet. Para completar a analogia, podemos mencionar a similaridade entre os conservadores atuais, que querem limitar o conteúdo midiático, e os padres que vêm até a propriedade de Quixote destruir seus livros. Essa gente está terrivelmente enganada sobre a fonte de seu descontentamento.
O drama no coração da Modernidade, a ferida infectada em nossa política e no coração de Dom Quixote, é a incomensurabilidade de nossa ideologia com nosso mundo. Para Quixote, o abismo entre seu ideal e o mundo externo era preenchido pela mídia disponível – livros – porque o mundo ameaçava negar-lhe seu ideal. Era mais fácil para ele cair no escapismo fantástico do que sintetizar o mundo com seu idealismo. Essa rasura ameaçadora deixa o Dom, assim como o sujeito moderno, preocupado com o desaparecimento total de sua identidade. Essa ameaça era real para Quixote, pois ele nasceu com um papel determinado, do nobre, e essa rasura arremessou-lhe numa crise existencial, de onde nasce sua fantasia elaborada. Essa separação do sujeito de seu mundo por uma realidade irreconhecível gera uma fenda metafísica na totalidade de sua existência, e isso gera hemorragias do imaginário sobre o real, em que o imaginário distorce uma realidade parda com a fachada luminosa da ilusão.
Em eras passadas, o imaginário era incorporado à hierarquia da existência como a superestrutura que abarca o indivíduo e o mundo, fazendo a mediação entre o sujeito e a realidade. Deus quis que os cruzados fossem à Terra Santa, fadas e deuses pagãos abençoavam as colheitas, a maré da guerra de Troia era direcionada pelas mãos divinas. Esses mundos são totalidades fechadas, e em tais mundos o imaginário é compartilhado por todos, e seus efeitos mediadores dão propósito aos povos e direcionam suas ações na direção de um desfecho comum. A congruência do imaginário e do real é imediatamente apreciável pelos efeitos no mundo real: os cruzados tomam a Terra Santa, os aqueus derrotam Troia. Em tais mundos, mitos são caminhos sagrados e não mero entretenimento. Em totalidades fechadas, o imaginário permanece fixado em uma posição relegada, relativa ao sujeito e seu mundo, mas uma vez que a ferida metafísica aparece, os monstros e o imaginário perdem o controle, e acabamos ficando com um homem armado até os dentes atacando um moinho.
A inabilidade de Quixote em diferenciar suas fantasias da realidade permeia o discurso cultural hegemônico nos Estados Unidos. Dom Quixote é o moderno arquetípico, buscando falsa inspiração em fantasias escapistas, mídia proliferante e ideais expirados. A totalidade fechada do passado foi escancarada e os ideais da América não mais equivalem aos ideais do indivíduo que luta para recriar o mundo numa imagem reconhecível por sua imaginação. Monstros modernos como “racistas, misóginos, supremacistas brancos e fascistas” são vistos assaltando o país, e o povo os ataca diretamente através do Black Lives Matter, e figurativamente através do Me Too, title IX, e outras frentes na guerra da “cultura do cancelamento”.
Ícones culturais dominantes foram dissolvidos em uma imagem pixelada de significantes desconexos tão numerosos quanto significados. Nossa mídia é apenas um reino da imaginação servido no buffet identitário americano. Podemos também escolher qualquer religião existente ou que já tenha existido, enquanto muitas outras são inventadas diariamente. A ideologia política também parece ser artesanalmente fabricada para qualquer disposição, e ideais que servem interesses e estilos de vida hiper específicos são trazidos ao discurso com peso maior que as crises que custam milhares de vidas e bilhões de dólares (23 “pessoas trans” foram assassinadas em 2016, enquanto 42.000 mil morreram por overdoses de opioides). Nesse meio, vemos americanos, como Dom Quixote, encontrando um mundo com suas ideias pessoais, e não determinado pela realidade em que vivem.
CERVANTES E SIMULAÇÃO
Alguém pode encontrar muitas razões para simpatizar com Dom Quixote e seus herdeiros modernos. Em sua condição, indivíduos passam a desviar o olhar do mundo oco ao seu redor para os mundos vibrantes e florescentes da fantasia. Jean Baudrillard é o filósofo quintessencial desse estado. Para ele, a proliferação da mídia sobrecarrega a realidade e serve como sua substituta. A reprodução sem fim de imagens cobre o real e o sujeito corre o risco de confundir o virtual pelo real. Baudrillard chama esse reino eletrônico da mídia de “hiper-realidade”, um substituto pós-moderno para o mito e o imaginário. Nessa condição, a mídia não mais gera uma realidade, mas a sobrepõe, ou como Baudrillard afirma em sua obra seminal, “Simulacro e Simulação”, o real é implodido pelo hiper-real. A hiper-realidade é o código genético que modela o real, torna sua aparência reconhecível ao habitante de uma cultura, como vimos no papel do mito na totalidade fechada passada. Com a proliferação exponencial da mídia eletrônica, códigos competidores bagunçam a forma de uma cultura e a tornam um tumor crescente, uma mancha de Rorschach sangrando pela América para cada pessoa interpretá-la de acordo com sua fantasia particular. Em Cervantes, temos um homem direcionado por sua imaginação: na modernidade, temos milhões.
Baudrillard também oferece uma percepção sobre como um sujeito pode agir quando se encontra em um mundo que não acomoda suas impressões ideais. Em seu ensaio “The Gulf War Did Not Take Place”, o autor argumenta que a Guerra do Golfo de 1991 foi uma simulação de guerra, que imagens televisionadas negavam qualquer chance de guerra real. O número bruto de imagens na televisão a cabo ultrapassava em muito as ações militares, ao ponto que Baudrillard argumenta que a dita “guerra” nunca realmente aconteceu. Terrorismo e sequestros são os dublês de frontes e exércitos, reações ao desaparecimento da guerra e a guerra simulada emergente. Isso é precisamente o que vimos durante a insurgência iraquiana, o Talibã, ISIS. Exceto por um breve período da invasão inicial ao Iraque, os EUA não lutaram contra nenhum “exército” real. Com o combate de drones vemos um desaparecimento ainda mais profundo da guerra, a inclusão da guerra no virtual. Muitas vezes o inimigo é eliminado por um drone enquanto realizam atividades mundanas, nem próximos de uma zona de combate. Eles nunca sequer veem o drone, e quem ataca realiza a operação atrás de uma tela.
Uma profética observação no ensaio de Baudrillard é de que as execuções de reféns em vídeo por terroristas é sua tentativa de provocar o virtual dentro do real, sua tentativa de tornar a simulação uma realidade, incitar a reação do outro e iniciar uma guerra real. Lembremos dos terroristas do ISIS, cujas execuções mais brutais e sensacionalistas foram de jornalistas, e não soldados. A violência, em vez de causar atrito, é uma provocação, para trazer o inimigo para fora do virtual, e dentro do real, o único lugar onde o sujeito tem qualquer possibilidade de remodelar o mundo com sua imagem desejada.
De fato, isso é exatamente o que a violência deve iniciar em Dom Quixote. Enquanto a violência é a principal fonte de humor é, ainda sim, real. Não é apenas um pastelão, pois não é encenada como barata ou teatral demais, o humor vem da incapacidade do Dom de infligir um dano real a qualquer um que não Sancho Panza, que toma as dores de muitas das batalhas que seu mestre inicia. O modo como os outros encaram suas batalhas absurdas aumenta o humor, pois seus inimigos o veem como louco quando ele os ataca. Embora ele incite uma resposta, nunca o é para algum fim, mas porque querem subjugá-lo e continuar com suas vidas. Ele torna-se um incômodo, mas devemos reconhecer que suas ações são uma tentativa de inaugurar o mundo que ele alucina ao seu redor. Essa é a mesma motivação de terroristas políticos: tornar seu mundo imaginário numa realidade, recodificar a forma dessa realidade em seu passado glorioso e imaginário, ou futuro utópico. Dom Quixote tenta provocar seu ideal no real, e assim transformar sua simulação de heroísmo cavaleiresco em verdadeira glória. Podemos aplicar esta mesma reflexão aos atores políticos da América atual.
Em nome do antirracismo, BLM e Antifas saqueiam lojas, quebram vidraças, causam incêndios e enfrentam a polícia. Eles são exemplares quintessenciais da reflexão de Baudrillard, pois sua destruição de propriedade não passa de uma simulação burguesa da violência, uma ação contida para provocar o mundo que os cerca a conformar-se com sua fantasia. Infelizmente, como aconteceu com a ISIS e Dom, suas tentativas de remodelar o mundo fracassam, apenas perpetuando e fortalecendo a violência. Mas como acontece com Quixote, cuja violência é uma encenação tola dos cavaleiros antigos, BLM e Antifas orquestram uma imitação desajeitada, ou simulação, de ancestrais extintos. A violência dos comunistas no fim do século XIX e início do século XX era mais coordenada, brutal e eficaz. Bombas eram colocadas em Wall Street ou aglomerações, assassinatos políticos eram realizados ou tentados, e depois da revolução Russa isso se espalhou pelo mundo. Após um certo tempo, um limiar será cruzado, e a simulação se tornará verdadeiramente real.
Dom Quixote estava permanentemente preso em suas ilusões porque ele tinha a resposta perfeita para todos os que tentavam fazê-lo ver as coisas através deles. Para o Dom, todos, menos ele, eram enganados por um feiticeiro malvado e, assim, ele é e era o único incólume contra a magia negra iludindo o mundo ao seu redor, tornando os outros incapazes de reconhecer os monstros. Isso lembra o filme “They Live” de John Carpenter, um precursor de “Matrix” e firmemente dentro da genealogia iniciada por Cervantes. Esse “truque maligno” funciona de muitas formas na modernidade. Teóricos da conspiração podem afirmar isso graças à – agora clássica – armadilha “estamos vivendo uma simulação”, onde tudo é operação de false-flag ou psyops. Todas as teorias da conspiração podem ser resumidas à explicação do “feiticeiro malvado” se você substituí-lo por atores nefastos em voga com facções específicas, seja Illuminati, sionistas, robôs russos e, mais recentemente, provocadores nacionalistas brancos em protestos do BLM. Talvez o maior exemplo até hoje de um truque do feiticeiro seja o escândalo do Russiagate, em que a democracia é ridicularizada porque os resultados não condizem com a ilusão coletiva da esquerda.
A proliferação da mídia e a ubiquidade de telefones adicionam nova camada de engodo ao tecido da realidade, e o “feitiço do mal” virtual questiona a realidade dos eventos simplesmente pela multiplicidade de ângulos e a preponderância de espectadores. Os eventos parecem ocorrer de um modo, e a presença de tanta divergência interpretativa não pode ser resultado da realidade própria, mas no modo como eventos são compreendidos ou interpretados. A agitação atual, por exemplo, pode ser reduzida simplesmente a uma incapacidade das massas em retificar suas crenças sobre o mundo e o modo como certos eventos ocorreram, incluindo os assassinatos da “Santíssima Trindade” BLM – George Floyd, Breonna Taylor e Jacob Blake – ou o caso de Kyle Rittenhouse. Esses eventos são interpretados completamente pelas ideias animadas de espectadores e não pelos eventos como eles aparecem na tela. Essas impressões levaram à violência, graças a ilusões semelhantes às quixotescas, porque a esquerda e o BLM veem toda ação pela ótica enfurecida de suas fantasias, o que causa sua rejeição da sequência de eventos vista nos vídeos. Vemos um homem atirar uma coisa em Rittenhouse e depois atacá-lo, assim como Dom Quixote vê pastores, hospedeiros e moinhos, mas os ataca, não pelo que está de fato à sua frente, mas pelo que ele acredita. Nós que não percebemos Rittenhouse como um racista assassino, ou o moinho como um gigante, somos enganados pelo feiticeiro malvado.
Parece que liberais e esquerdistas radicais batalham contra o feiticeiro em todos os lugares, ele que espalha entre as massas sua magia negra do racismo, misoginia, homo e transfobia. Esse Quixotes valorosos tomam para si a luta contra os monstros possessos, pois eles são os únicos que percebem a ilusão maléfica pelo que ela é. Como percebem a si, esses manifestantes e antifas, senão como bravos cavaleiros defendendo os fracos e oprimidos dos racistas, monstros “fóbicos” e cavaleiros malignos? Qualquer um que negue o racismo como coração dos problemas americanos , ou refute a inexistência da cultura de cancelamento, é simplesmente incapaz de perceber a mágica pelo que ela é. Para isso não temos simplesmente cavaleiros, temos Feiticeiros Brancos como Robin DiAngelo, cujo trabalho é como um antigo livro de feitiços para erradicar a magia negra em nossas mentes, seu feitiço encantando a armadura brilhante de Paladinos para todos os Quixotes despertos e engajados nesta justa batalha.
“Quixotesco” adquire um novo e patético sentido, neste contexto. Em vez de motivados por um idealismo caprichoso para atingir objetivos ilusórios, como o termo popularmente subentende, eles são animados por um modo de vida moribundo, desprovidos de um sentido transmitido pelo mundo que habitam, passando pelo mundo, motivados por ideias zumbi. Estas ideias mortas – cavalheirismo, racismo sistêmico, socialismo, até mesmo a democracia – infectam o hospedeiro e animam o corpo a tropeçar por um mundo que não tem lugar para enterrá-los. Nietzsche alertou que o niilismo estava à nossa porta. Nosso materialismo o deixou entrar, e trouxe a esquerda radical consigo. A esquerda e todas as suas manifestações, ideais e aqueles que as construíram, são os remanescentes de uma era moribunda. O Rasputin que abusou da hospitalidade palaciana e transformou a casa dos Romanov em um bordel, o Quixote que ficou sem inimigos para enfrentar e ataca seus vizinhos, nós involuímos para um exército de Quixotes, batalhando entre nós enquanto o verdadeiro monstro, o Dragão da Globalização, senta-se contente em sua crescente montanha de ouro e ossos.
Tradução: Augusto Fleck
Fonte: Astral Projections