O até aqui primeiro, mas que pode se revelar como único, mandato de Donald Trump poderia, num futuro não tão distante, ser em parte rememorado por seu baile no fio da navalha com o Deep State. Em política externa – e é isso que nos interessa – ele apresentou uma ação notavelmente menos agressiva que a de seus antecessores, aproximando-se de governos antes inimistados, e que- apesar de protagonizar ações aparentemente desordenadas e por tantas vezes execráveis, tal como a que findou a vida do general iraniano Qasem Soleimani, – abriu a passos largos uma senda de retirada estratégica global do imperialismo estadunidense.
Todavia, talvez pelos motivos acima expostos, seu governo entrará para história por ter sido um alvo contínuo por parte do amplo espectro liberal que buscou de forma incessante derrubá-lo por uma via rápida, já fosse por conta de seus supostos, e nunca provados, vínculos com o governo russo, pelo escândalo ucraniano ou por qualquer outro tropeço. Certo é, porém, que apesar de lograr confinar seu governo a um espaço de manobra reduzido, todos os movimentos da oposição caíram por terra: a poucos meses das eleições, Trump desponta novamente como candidato republicano inconteste e com consideráveis chances de vitória num embate contra uma candidatura democrata incapaz de suscitar grandes paixões.
Mas se por algo tem de ser reconhecida a oposição ao governo Trump, é que esta jamais abandonou a peleia. Como já remarcado por vários intelectuais, entre eles o camarada Andrew Korybko em um excelente artigo recente, a guerra híbrida chegou aos EUA e está instalada nas cidades daquele país. Dessa forma, os Estados Unidos estão tomados pelo modus operandi das revoluções coloridas: uma espiral de caos que explora uma contradição “realmente existente” do Estado alvo, ou do governo, para lograr sua derrocada. Em suma, tal processo busca forçar um justificado movimento de violência por parte do governo central, com potencialidades de catalisar um cenário de “guerra híbrida” de fato, ou explorar uma provável inanição tendo em conta as eleições que se aproximam logo dobrando a esquina. No primeiro caso se coroa a imagem de um “Trump fascista” que a corja liberal tentou forçar nos últimos anos; no segundo, arrisca a perder sua base de apoio. No pior dos casos, o resultado é a fragmentação da unidade nacional. Em ambas as prospecções, é possível entrever a chegada de uma hegemonia das camadas mais reacionárias da elite neocon estadunidense que galopa num discurso social batido que se ampara às custas do resto do mundo.
Que nos perdoem os tantos incautos, mas somente um tipo mal-intencionado pode ignorar as recentes guerras globais de Obama, o histórico sanguinário de Hillary, os “esquemas” escusos de Biden ou a morbidez passivo-agressiva de Sanders em nome de sustentar qualquer posição torpe anti-Trump. Somente uma alucinação emocionada pode explicar aquele que ignora o real “cenário ucraniano” instalado no país e crê estar testemunhando uma verdadeira revolução dos oprimidos.
Já foi dito antes, repito aqui: infelizmente, na atual conjuntura não existe qualquer presidenciável nos EUA mais “à esquerda” que Trump. Tampouco parece certo que uma das menores minorias – valha a redudância – da população vá liderar a realização da profecia marxista da revolução proletária no centro do capitalismo global.
As forças que agora mostram os seus dentes nos EUA não são outras que aquelas velhas conhecidas que sustentam há um bom tempo seu olhar para a Rússia, para o Irã ou para a China. Se isso soa errado aos seus ouvidos, é necessário voltar duas casas a fim de entender em seu mais mínimo quais são as características, fins e a quem responde a guerra atualmente. Caso contrário, estaremos atados ao palavreado caduco que torna impossível a compreensão das contradições que permeiam nosso momento histórico. A leitura de Moniz Bandeira em “A Segunda Guerra Fria” e do mesmo Korybko em “Guerras Híbridas – Das Revoluções Coloridas aos Golpes” pode ser pertinente aqui.
E aqui abajo, cerca de las raíces, que isso importa? Bem, fato é que nas bordas do império já se fazem sentir os respingos do caos estadunidense que embalam uma onda de protestos locais que, apesar de necessários, hibridizam subvertendo, desde uma narrativa estrangeirizante, aquelas calamidades e riquezas que são tão nossas.
Nas últimas semanas, por conta de um fato que de outra forma seria meramente anedótico, pululam discursos inflamados de aparentes especialistas que descobriram tardiamente os horrores do Euromaidan, do perigo dos enlaces entre brasileiros e grupos ucranianos e de uma suposta “ucranização/fascistização” do Brasil. Somaram-se a esses aparentes desvarios a “espiral” estadunidense e a emulação de um discurso racial de uma realidade alheia.
Cremos que essas discussões podem se mostrar importantes se bem direcionadas, dado que envolvem temas importantes da geopolítica global. Todavia, é preciso cuidado. Esta é a hora correta de se utilizar das análises sobre “guerra híbrida” que até alguns meses atrás jorravam sem muita regra e que agora parecem haver sido silenciadas e esquecidas.
Sim, é fato que na Ucrânia parte da tropa de choque do euromaidan era conformada por neonazistas devidamente apoiados pelo ocidente. Isso não é de nenhuma maneira impeditivo de que nos EUA a “GH” se desenlace por meio de minorias e antifas. Aqui não temos um problema da dicotomia clássica do espectro político, mas, de fato, um embate próprio de um momento histórico onde estão se enfrentando forças telúricas contra a liquidez solvente do liberalismo global. As barricadas em Kiev foram compartilhadas por anarquistas, lib-lefts, trotskos, miseráveis, imigrantes chechenos, desesperados vários e também por neonazistas. Obviamente, estes últimos cobraram importância nas vicissitudes daquele processo específico por questões próprias daquela realidade também especifica. Isso apenas revela o “core” fluído, adaptativo e lastreado nas contradições locais da “GH”. Certamente, não havia muitos “neonazistas” em Bengazi ou Raqqa, certo?
Num momento em que liberais de todos os matizes têm na ativista Sara Winter, e em seu pouco significativo teatro bizarro, uma muleta para desviar da discussão política séria, cada um dos “militantes do bem” têm potencialidade de ser “mais Sara Winter” do que a mesma.
Não há nenhum empecilho para que no Brasil sejam bandeirinhas antifascistas, alçadas pelas classes-médias cosmopolitas ruminantes e citadinas, as “tochas” que iluminam o caminho da nova fase do processo que nos carrega para algo muitíssimo mais refinado e perverso do que o governo de ineptos que por ora – e quase por acidente – está em Brasília.
O mesmo vale, de um jeito ou de outro, para Washington.