O coronavírus não é a primeira pandemia que muda drasticamente a vida das pessoas em todo o planeta. Ao contrário, a nossa memória coletiva mantém viva nos mitos, no folclore, na arte, a lembrança da vinda da peste. A peste do século XXI não estaria tendo o impacto que possui se não fosse pelo liberalismo. O dogma da livre circulação de pessoas e mercadorias facilitou a difusão rápida do coronavírus por todos os continentes e serve como barreira ideológica para que os Estados liberais tomem as atitudes necessárias para proteger as vidas de seus cidadãos.
Nesse texto, o filósofo Aleksandr Dugin analisa o papel do liberalismo na difusão do coronavírus, o simbolismo da peste e a possibilidade de envolvimento da elite global nessa pandemia. Um texto que merece ser lido.
O Coronavírus e o Colapso da Ordem Mundial
Nas últimas décadas, tem havido grande expectativa a respeito do surgimento de algo fatal, irreversível, decisivo. Talvez a epidemia do coronavírus seja esse algo. É muito cedo para tirar conclusões exatas, é verdade, mas alguns elementos geopolíticos e ideológicos parecem ter ultrapassado um limiar sem retorno. Em outras palavras: a epidemia de coronavírus representa o fim da globalização.
A Sociedade Aberta reúne as condições necessárias para a pandemia. Aqueles que escolheram derrubar as fronteiras foram os mesmos que, fatalmente, prepararam o território para a aniquilação total da humanidade. Você pode rir, sim, mas logo vai aparecer alguém vestindo um roupão Hazmat branco para tirar o sorriso (inadequados) do seu rosto; e então, só o fechamento poderá nos salvar. Fechamento em todos os aspectos: fronteiras fechadas, economias fechadas, fornecimento fechado de bens e produtos; o que Fichte chamou de Estado de comércio fechado. Soros deve ser linchado, e um monumento deve ser construído para Fichte. Essa é a primeira lição.
A segunda: o coronavírus é a última página do liberalismo. O liberalismo, em todos os sentidos, tornou mais fácil a propagação do vírus — já que a epidemia requer a demolição de todas as fronteiras. O liberalismo, portanto, é o vírus. Logo, logo e os liberais serão equiparados a “leprosos” e “maníacos” contagiosos, que falam em dançar e se divertir em meio à peste. O liberal é o portador do coronavírus, seu advogado por excelência. Isso ficará mais evidente caso se verifique mesmo que o vírus foi criado nos Estados Unidos, a cidadela do liberalismo, como uma arma biológica. Segunda lição: o liberalismo mata.
Terceira: os critérios de sucesso e prosperidade dos países e sociedades estão mudando dramaticamente. Na batalha contra a epidemia, nem a riqueza da China, nem o sistema social europeu, nem a ausência de um sistema social nos Estados Unidos (que é a maior potência militar e financeira do mundo) trarão a salvação. Mesmo o regime espiritual e vertical do Irã não está ajudando. O coronavírus cortou todos os fios da civilização – petróleo, finanças, livre-comércio, o mercado, o domínio total do FED… os líderes mundiais estão indefesos. Critérios completamente diferentes têm vindo à tona:
(i) a posse de um antiviral;
(ii) a capacidade de garantir, autonomamente, a vida para si e para os seus entes queridos em condições de fechamento máximo.
Cumprir esses critérios significa reavaliar todos os valores até então em voga. No entanto, é razoável postular que a vacina está no quintal daqueles que mais provavelmente desenvolveram o vírus, e é, portanto, uma solução pouco confiável. Mas o fechamento e a transição para a autossuficiência é algo que todos podem fazer, embora, para tal, seja necessária a multipolaridade. As pequenas propriedades e as trocas naturais sobreviverão ao colapso total de tudo.
Então, quais seriam os próximos passos lógicos após a marcha triunfante do coronavírus sobre o planeta? Na melhor das hipóteses, o aparecimento de diversas zonas relativamente fechadas no mundo – civilizações, grandes espaços – ou, na pior das hipóteses, a realidade pintada em Mad Max e Resident Evil. A série russa A Epidemia está se tornando realidade diante dos nossos olhos.
Os deuses da Peste:
Estou começando a compreender porque, em algumas sociedades, os deuses da peste eram reverenciados e adorados. A chegada da peste permite uma renovação completa das sociedades. A epidemia não tem lógica e não poupa nem nobres, nem ricos, nem poderosos. Ela destrói a todos, indiscriminadamente, e traz as pessoas de volta ao simples fato de serem o que são. Os deuses da peste são os mais justos. Antonin Artaud escreveu sobre isso, comparando o teatro com a peste. O propósito do teatro, segundo Artaud, é, com toda a crueldade possível, devolver ao homem o fato de que ele é e está aqui e agora: um fato que ele procura persistente e consistentemente esquecer. A peste é um fenômeno existencial. Os gregos chamaram Apollo Smintheus de “o deus rato” e atribuíram às suas setas o poder de trazer a peste. É aqui que começa a Ilíada, como todos sabem. E é basicamente isso que Apolo faria se olhasse para a humanidade moderna: banqueiros, blogueiros, rappers, deputados, operadores de escritório, migração em massa, feministas…
Bunuel tem um filme chamado O Anjo Exterminador, que trata mais ou menos desse ponto.
Como o mundo termina:
Podemos também tomar nota acerca dos elementos da epidemia que parecem sugerir que ela foi fabricada pelo homem, ou simplesmente permitida pelo Ocidente contra seus opositores geopolíticos (o que explica a China e o Irã, mas não a Itália e o resto); ou mesmo o início do extermínio seletivo do excedente populacional pelas mãos de um pequeno círculo, a essa altura, já portadores de uma vacina por eles próprios desenvolvida (isto é, pelo “progresso” e pela “sociedade aberta”). Nesse caso, os deuses da peste podem vir a serem representantes bastante específicos da elite financeira global, que há muito fala sobre os “limites do crescimento”. Mas mesmo neste caso – especialmente se este não for o início de um verdadeiro genocídio global, mas de apenas um teste –, a conclusão é a mesma: aqueles que fingem ser responsáveis pelas sociedades humanas não são o que parecem.
O liberalismo é apenas um pretexto para o extermínio em massa, como o foram a colonização e a difusão dos padrões da civilização ocidental moderna. As elites globais, com a ajuda de suas marionetes locais, podem estar contando com o fato de que irão sobreviver com uma vacina, mas algo sugere que, para eles, pode ser aí que mora o perigo. O vírus pode se comportar de forma não prevista, e os processos que começaram no nível civilizacional, e mesmo em eventos individuais imprevisíveis e espontâneos, podem interromper seus planos arquitetados até aqui. Em outras palavras: a economia mundial inteira pode não entrar em colapso nos próximos meses, mas parece estar indo exatamente nesta direção.
Tudo que, modernamente, é considerado “sustentável” e “confiável” é pura ilusão — o coronavírus está mostrando isso claramente. Na verdade, uma vez que a lógica dos eventos atuais continue a avançar um pouco mais, podemos ver como o mundo acaba: pelo menos o mundo que conhecemos e conhecíamos; simultaneamente, os primeiros contornos de algo novo começarão a aparecer.
Matéria em risco:
É curioso que, paralelamente ao coronavírus, que se tornou, de certa forma, o assunto do momento, surgiram discussões na comunidade científica sobre as “bolhas de nada”, reavivando algumas hipóteses do famoso físico Edward Witten, um dos principais teóricos do fenômeno das “supercordas”.
Segundo os físicos modernos, as “bolhas de nada” podem surgir de um “pseudo-vácuo”, ou seja, de um vácuo que não atingiu a estabilidade, mas apenas parece tê-la atingido. No mundo de dez dimensões (com 4 medidas comuns e mais 6, presentes através da compatificação), tais “bolhas de nada” são bastante prováveis. Se elas surgirem, podem sugar galáxias para o nada e engolir o Universo. Tais redemoinhos, geradores de aspiradores instáveis, não deixariam pedra sobre padra. E mais uma vez, como no caso do coronavírus, eles dizem: “Nada de ruim está acontecendo, tudo está sob controle”. Ou seja: os representantes da elite científica nos asseguram que a chance do aparecimento das “bolhas de nada” é ridiculamente pequena.
Mas parece-me que não é o caso. Pelo contrário. O que está acontecendo é bastante significativa. O mundo moderno é exatamente uma “bolha de nada” que está crescendo rapidamente, absorvendo e dissolvendo o sentido da existência: liberalismo e globalização são suas expressões mais vívidas. O coronavírus é também uma “bolha de nada”.
A própria natureza deste vírus é interessante (embora eu odeie o conceito de “natureza”: não há nada mais despido de sentido que tal conceito). É algo entre um ser vivo – possui DNA ou RNA – e um mineral (não tem células). Contudo, acima de tudo, lembra-nos uma rede neural ou mesmo uma Inteligência Artificial. Está lá, vivo ou não, inanimado ou não… é precisamente isso que é o “vácuo de não-equilíbrio”, que cria essas “bolhas de nada”.
Nós acreditamos que o vácuo do Universo está em equilíbrio, ou seja, que todo o ciclo para uma possível entropia já passou… mas e se isso for apenas aparente?
Quando ouvimos a história do mercado Wuhan e imaginamos a luta dos morcegos com as cobras venenosas, sua feroz troca de contágio e de setas microscópicas assassinas de não-existência em forma de coroa, é impossível não pensar na imagem das bolhas de nada. O mesmo sentimento é provocado pela queda dos preços do petróleo e o colapso dos índices das ações na bolsa. Mesmo a guerra – com a sua especificidade e despertar existencial – não nos salvará do ataque do nada, pois a motivação das guerras modernas está tão profundamente enredada em interesses materiais, financeiros e corruptos, que ela já perdeu há muito a sua pureza original (o encontro direto com a morte). Serve apenas como mais uma bolha de nada, cumprindo telegrafada para levar a matéria à destruição.
A Peste como evento
É possível esperar que, uma vez que se lidecom o coronavírus, a humanidade chegue à conclusões certas: restrinja a globalização; jogue fora as superstições liberais; pare a migração e ponha um fim às invenções técnicas obscenas que estão mergulhando a todos cada vez mais fundo nos labirintos intermináveis da matéria? A resposta é, claramente, não. Todos voltarão rapidamente aos seus velhos caminhos num piscar de olhos, antes mesmo de os cadáveres serem enterrados. Assim que – e se – os mercados ganharem vida e o Dow Jones voltar a acordar, tudo voltará ao normal. O ingênuo é aquele que pensa o contrário. Mas o que significa isso? Significa que mesmo uma epidemia desta escala será transformada em um infeliz mal-entendido. Ninguém vai entender o significado da vinda dos deuses da peste; ninguém vai refletir sobre as “bolhas de nada”; e tudo se repetirá uma e outra vez até chegar ao ponto de não-retorno.
Se prestarmos atenção à passagem do tempo, deve ficar claro que estamos atualmente atravessando esse ponto.