Havendo já passado algumas semanas do atentado terrorista que tirou a vida do general Qassem Suleimani, pode-se analisar com maior sobriedade o sentido do assassinato bem como suas possíveis consequências. Por isso, trazemos uma tradução sobre o evento, publicada na prestigiada revista italiana Eurasia.
Um Mártir da Eurásia
Todo projeto ou iniciativa que vise a integração e cooperação dentro do continente eurasiático é percebido pelos Estados Unidos como uma ameaça existencial. Não compreender esta simples verdade significa ser incapaz de compreender as razões subjacentes ao atual choque geopolítico. Parafraseando Martin Heidegger, quase se poderia afirmar que os atuais analistas geopolíticos produzem/escrevem muito, mas pensam muito pouco no que é realmente essencial.
Os Estados Unidos enfrentam uma fase de crise da qual a “sobre-extensão imperial” é ao mesmo tempo a causa e a única forma de continuar a alimentar o seu “gigantismo” inato (outro conceito puramente heideggeriano).
Em uma altura em que a intervenção militar direta já não é uma solução viável, a única alternativa possível para manter o seu sistema hegemônico mais ou menos inalterado, em vez da mudança de regime “tradicional”, é determinar o caos, impondo a divisão e o domínio também através das ações que já nos anos 20 do século XX Carl Schmitt definia em termos de “gangsterismo”.
Esta solução foi aplicada à Líbia. Aqui, os EUA (os verdadeiros artífices da agressão, embora muitas vezes tentem apontar a França e a Grã-Bretanha como os principais culpados) nunca tentaram instalar um governo a seu favor. Com base na doutrina da “guerra permanente” atribuível ao casal Cebrowski/Rumsfeld, foi simplesmente criada uma situação de anarquia que de forma alguma poderia encontrar uma solução política (rápida). Isto explica porque Washington continua, em fases alternadas, a apoiar mais ou menos veladamente uma das duas facções em luta. E aqui está a razão pela qual a deslocalização das milícias jhadistas da Síria, pela Turquia, é vista de bom grado pelo Pentágono. Através da Líbia, os milicianos podem facilmente chegar aos países do Sahel, tornando a presença do Africom dentro deles indispensável para a “segurança”, em uma altura em que a Rússia e a China estão a trabalhar no desenvolvimento da cooperação comercial e militar com o continente africano.
Agora, no que diz respeito aos fatos do Oriente Médio, poucos compreenderam a verdadeira extensão do ato criminoso (não justificável de forma alguma pelo fato de Washington ter declarado os Guardas Revolucionários como uma organização terrorista) com o qual os Estados Unidos eliminaram o general Suleimani. Ninguém, por exemplo, teve em conta que apenas alguns dias antes haviam começado os exercícios navais conjuntos “Cinturão de Segurança Marítima” entre a China, o Irã e a Rússia no Golfo de Omã e no Oceano Índico. Exercícios que, de acordo com a declaração do vice-comandante do Exército Iraniano Habibollah Sayyari, seriam apenas a primeira fase de uma cooperação militar destinada a garantir a segurança de uma junção crucial para as necessidades energéticas globais.
Portanto, uma primeira chave de leitura que pode explicar a “brutalidade” da escolha norte-americana pode ser a sua necessidade de enviar um sinal claro. Os Estados Unidos continuam sendo o país hegemônico da região (o que é claro se simplesmente se observa o mapeamento das instalações militares norte-americanas na área) e não sairão logo, já que a suposta “revolução do petróleo de xisto” está se resolvendo rapidamente em uma bolha financeira e ambiental. E não tolerarão a intromissão de terceiros, mesmo que a “convite”.
Isto leva à investigação de uma segunda chave (talvez ainda mais importante), diretamente ligada à primeira parte desta análise, e à qual foi feita referência na edição 4/2019 da “Eurasia”, dedicada internamente ao Irã.
É bastante evidente que os Estados Unidos não podem, de forma alguma, se permitir um confronto direto contra Teerã. Isto é bem sabido no Pentágono. O sabem menos certos “falcões” embriagados em messianismo judaico-evangélico do que o círculo imediato de Donald J. Trump. Washington não está à procura de uma guerra aberta. Está à procura da desestabilização ad infinitum da região. E o assassinato de Suleimani se encaixa perfeitamente nessa estratégia.
O primeiro-ministro iraquiano Adil Abdul Mahdi revelou que o comandante do corpo de elite da Guarda Revolucionária tinha ido a Bagdá em busca de mediação com a Arábia Saudita para reduzir as tensões na região. No número acima mencionado de “Eurásia”, foi feita referência à notícia de que diplomatas russos e iranianos estavam trabalhando com as monarquias do Golfo para a realização de um “pacto de não-agressão” entre atores regionais[1].
Uma eventualidade não exatamente apreciada por Washington, se considerarmos as encomendas de armamento conspícuas que partem das monarquias acima mencionadas cada vez que a tensão na área aumenta. E razão suficiente, por si só, para explicar o silêncio substancial do radar quando as plantas petrolíferas sauditas foram sujeitas a ataques dos rebeldes iemenitas[2].
Na verdade, Suleimani foi morto porque era o único homem capaz de construir uma verdadeira mediação entre as partes. Washington (e com ela Tel Aviv) com seu assassinato já obteve o que queria: frustrar a possibilidade de um equilíbrio regional que faça com que sua presença na região não seja mais indispensável. Por esta razão, não haverá (no momento) mais nenhuma ação militar dirigida contra o Irã. Este processo terá agora de recomeçar desde o início, sem um dos seus principais intérpretes e sob a constante ameaça de novas represálias terroristas norte-americanas. Qassem Suleimani, portanto, não é apenas um mártir iraniano. Como muitos outros que caíram na tentativa de construir uma alternativa à hegemonia global norte-americana, ele é um mártir da Eurásia como um todo.
As acusações contra o Irã
O que (teoricamente) deveria ter sido notado como um momento no qual reunir as fileiras da frente que se opõe à unipolaridade norte-americana, revelou-se mais um fator de divisão. De muitos lados se levantou o refrão “nem com os EUA nem com o Irã”, citando fatores históricos e ideológicos mais ou menos complexos como justificação.
Neste contexto, vamos ignorar a acusação, no mínimo banal, que gostaria de fazer do Irã um país imperialista no mesmo nível que os Estados Unidos(uma acusação feita em várias ocasiões também contra a Rússia e a China). Um número inteiro de “Eurasia” (2/2013) com o emblemático título “Imperialismo e Império” foi dedicado a este tema. Aqui, basta lembrar que o Irã, antes de ser um Estado nacional (no óbvio sentido moderno do termo), era um Império (no sentido ligado a esta ideia eterna). Um império que, ao contrário da China, não conseguiu na modernidade preservar totalmente a sua unidade territorial.
Agora, uma primeira acusação que é feita contra a República Islâmica é a de ter mobilizado o componente xiita iraquiano contra Saddam Hussein. Este fator teria determinado tanto o longo conflito dos anos 80 como o fluxo (ilegal, dado que o Irã estava sob embargo) de armas norte-americanas para Teerã (escândalo Irã-Contras). Esta ideia extremamente reducionista do conflito acima mencionado não leva em consideração nem alguns aspectos geopolíticos fundamentais nem alguns problemas dinâmicos dentro da então recém-fundada República Islâmica.
Em primeiro lugar, se evita conscientemente de lembrar que os Estados Unidos forneceram ao Iraque, em grande parte, durante o mesmo conflito, tecnologia com dupla utilização militar/civil, armas não de produção norte-americana (estratégia inicialmente utilizada também no contexto afegão), ajuda econômica direta, inteligência e serviços logísticos[3].
Em segundo lugar, não leva em consideração o fato de que o Irã, no instante imediatamente após a Revolução, tinha um exército que, como legado da era Pahlavi, estava equipado exclusivamente com tecnologia militar norte-americana e israelense. Sujeita a um embargo e forçada a um conflito desgastante, a República Islâmica só poderia ter garantido a sua sobrevivência através da procura de canais alternativos, a fim de suprir um exército que, na altura, não podia permitir uma reestruturação total em termos de armamento.
Além disso, não se pode esquecer que durante muito tempo, mesmo após a crise dos reféns, os Estados Unidos continuaram a pensar (também em virtude da presença de uma conspícua “quinta coluna” na sociedade iraniana) que poderiam manter o Irã dentro da sua órbita geopolítica.
O que Washington fez naquela ocasião foi simplesmente o que continua a fazer hoje: apoiar as duas partes no conflito mais ou menos em fases alternadas, prolongá-lo o máximo possível enfraquecendo a ambas.
Isto é agravado pelo fato de o papel do Iraque baathista no Oriente Médio à época ter sido muitas vezes sobrestimado. É bom lembrar que o baathismo iraquiano, se por um lado desenvolveu uma ideia de tomar o poder que misturava elementos leninistas com elementos mais estritamente “populistas” (a não ser entendido no sentido que é atualmente atribuído ao termo), por outro lado imediatamente se distinguiu pela prevalência da alma pequeno-nacionalista (qawmi) sobre a alma pan-árabe (qutri); a segunda era característica do primeiro Ba’ath sírio de Michel Aflaq, que passou os últimos anos de sua vida no Iraque, coberto de honras como um “ideólogo”, mas totalmente ignorado no nível da tomada de decisões[4].
É desnecessário dizer, além disso, que o pequeno nacionalismo sempre foi considerado não só como o primeiro e mais insidioso inimigo da unidade do mundo árabe, mas também como a principal ameaça à construção de uma frente compacta de libertação contra o imperialismo. Esta foi também a razão pela qual, durante a Segunda Guerra Mundial e após a fracassada insurreição iraquiana de 1941, se deu a fratura entre o Grão-Mufti Hajj Amin Al-Husseini e o político nacionalista iraquiano Rashid al-Ghaylani[5].
A história ensinou que a unidade (cooperação militar e comercial) é a única forma de enfrentar um inimigo capaz de explorar cinicamente e impiedosamente as fraquezas dos outros.
Hoje mais do que nunca, portanto, é necessário recompor a frente acima mencionada, para que o martírio de Qassem Suleimani não se torne a enésima ocasião oferecida ao inimigo para cavalgar as tendências divisórias e mistificadoras em seu interior.
Notas
[1] Hamidreza Azizi, Security Dilemma: are Iran and the US heading toward a war?, Institute for Iran-Eurasia Studies, www.iras.ir.
[2] Ver Alcune considerazioni sugli attacchi all’Arabia Saudita, www.eurasi-rivista.com.
[3] Ver K. R. Timmerman, The Death Lobby: How the West Armed Iraq. New York, Houghton Mifflin Company, 1991. Non si può dimenticare, inoltre, il celebre incontro a Baghdad tra Donald Rumsfeld e Saddam Hussein.
[4] Ver M. ‘Aflaq, La resurrezione degli Arabi, Edizioni all’insegna del Veltro, Parma 2011.
[5] Ver, S. Fabei, Guerra santa nel Golfo, Edizioni all’insegna del Veltro, Parma 1990.
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