Uma introdução a Muammar al-Gaddafi e o Livro Verde

Por Troy Southgate
Tradução: Mateus Iale

Fonte: https://nowhere.news/index.php/2019/06/20/an-introduction-to-muammar-al-qathafi-and-the-green-book/?fbclid=IwAR378W8scvXGqButbK8isdHJUNkfvJjt5Guocdq13Vv2BUw_mVul6jH9fMQ

Meu primeiro contato com o Livro Verde foi em 1986, quando era membro do National Front (NF). Crescendo na Inglaterra, em meio à ganância repressiva e à corrupção da era  Thatcher, as idéias de senso comum contidas neste pequeno e refrescante texto me atingiram com toda a força de uma marreta literária.

Antes de meados da década de 1980, o NF – até então um nome familiar, embora por todas as razões erradas – era uma organização bastante negativa que era frequentemente povoada por uma mistura de imperialistas britânicos e fantasistas neo-nazistas, mas uma vez eliminados alguns dos elementos mais reacionários de suas fileiras, o grupo rapidamente começou a evoluir para um movimento revolucionário comprometido com a liberdade nacional, a justiça social e a derrubada da classe dominante capitalista. Como resultado, a postura ‘terceiro posicionista’ do NF – nem esquerda, nem direita – levou o grupo a se alinhar com certos dissidentes ao redor do mundo que tinham um interesse comum em se opor aos males gêmeos do capitalismo e do comunismo.

Estes incluiam, por exemplo, o aiatolá Khomeini do Irã, que, em 1979, havia levado seu país para longe das marionetes pró-americanas do regime encharcado de petróleo do Xá e em direção a uma teocracia xiita. O NF também demonstrou seu apoio a radicais negros como Jerry Rawlings, de Gana, e Louis Farrakhan, dos Estados Unidos, sem mencionar o afro-centrismo positivo do falecido Marcus Garvey.

Da mesma forma, a organização também ficou impressionada com o líder anti-sionista da Líbia, Muammar al-Gaddafi, um homem que resistiu desafiadoramente ao poder combinado das democracias liberais ocidentais por um longo tempo e que, no mesmo ano em que descobri o Livro Verde , havia provocado a ira militar do desastrado presidente americano, Ronald Reagan.

Posteriormente, e com a bênção completa de Margaret Thatcher, as Forças Aéreas dos Estados Unidos lançaram, de solo inglês, uma onda de ataques aéreos imperialistas e a pátria norte-africana de Gaddafi foi devidamente bombardeada diante da ordem aparentemente incontestável do sionismo internacional. O público anglo-americano, crédulo na melhor das hipóteses, estava pronto para acreditar em qualquer coisa que seus governos corruptos jogassem contra eles e, em pouco tempo, a mídia de massa clamava, dos telhados, pela cabeça do louco Muammar al-Gaddafi . Enquanto isso, Gaddafi perdeu um de seus próprios filhos nos bombardeios. A verdadeira razão pela qual ele foi alvo dos sionistas, é claro, é que sua Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia (JAPSL) era um feroz oponente do estado de Israel e um defensor vociferante da autodeterminação palestina.

Muammar al-Gaddafi, que ganhou destaque durante um incruento golpe de estado em 1º de setembro de 1969, herdou um país que, até então, era liderado pelo rei Idris I, um monarca que não tinha medo de expressar suas simpatias pela Grã-Bretanha e pela América. Depois que Gaddafi e seus apoiadores derrubaram o antigo regime, eles logo estabeleceram um Conselho de Comando Revolucionário. De fato, ao contrário da propaganda ocidental de que Gaddafi era algum tipo de “ditador”, ele continuou a manter sua posição de coronel no Exército da Líbia e tal era sua popularidade entre as pessoas que ele era capaz de andar pelas ruas sem medo de assassinato.

As idéias contidas no Livro Verde, publicado pela primeira vez em 1975, representam uma séria ameaça ao liberalismo ocidental e minam completamente a fachada em ruínas da “democracia”, na qual somos levados a acreditar que serve como um modelo administrativo e legislativo para o mundo. A cópia do Livro Verde que comprei em 1986 havia sido impressa na Malásia no final da década de 1970, pouco depois de as idéias de Gaddafi – conhecidas como Terceira Teoria Universal – terem sido aplicadas pela primeira vez na Líbia. Era um livro atraente, de bolso – verde, é claro – e alguns dos slogans mais importantes e memoráveis ​​do texto foram deliberadamente destacados. Estas frases apareceram na margem e incluíram expressões como “nenhuma representação no lugar do povo”, “representação é uma negação de participação” e “representação é uma falsificação da democracia”.

O ponto que o autor argumentava é que a democracia representativa – ou seja, um sistema no qual as pessoas elegem um político para supostamente “servir” a seus interesses – está essencialmente aberta a abusos. Gaddafi defende a participação efetiva do próprio povo, algo que, nas Ilhas Britânicas, certamente levaria ao estabelecimento de comitês de ruas e regionais, substituindo o atual Membro do Parlamento (MP) de cada círculo eleitoral.

Ao contrário do tipo de ‘democracia’ que atualmente opera nas Casas do Parlamento, através da qual os MPs permanecem no poder por um período não inferior a quatro anos, o modelo líbio era uma forma de democracia direta e se seus delegados não servissem fielmente aos interesses das pessoas, eram substituídos imediatamente. A solução para a fraude do parlamentarismo, portanto, é conhecida na Líbia como “a autoridade do povo”.

O Livro Verde também analisa a situação econômica e oferece uma alternativa real aos credos estéreis do capitalismo e do comunismo que haviam dividido entre si grande parte do mundo. O autor chama sua idéia de “socialismo”, mas tem muito mais em comum com o anticapitalismo radical de pessoas como Robert Owen, William Morris e Robert Blatchford, ou o distributismo de Hilaire Belloc e G.K. Chesterton, do que com o decididamente impraticável e pseudo-igualitário dogma oferecido pela esquerda neo-marxista.

Os trabalhadores na Líbia detinham participação em suas fábricas e possuíam os meios de produção, algo que nunca saiu da prancheta teórica em lugares como a Rússia soviética e a antiga Alemanha Oriental. Gaddafi também aborda a questão de como essas idéias afetarão a esfera social e examina o relacionamento entre o indivíduo, a família, a tribo e a nação, bem como questões relacionadas a mulheres, educação, arte e esporte.

Até que ponto a Terceira Teoria Universal foi realmente aplicada na Líbia continua sendo um assunto de grande controvérsia. No entanto, uma de suas primeiras tarefas como líder da revolução Al Fateh foi acabar com a importação de mercadorias estrangeiras para o país, mas foi apenas no final da década de 1970 que as coisas realmente começaram a mudar. Em 1981, Gaddafi havia estabelecido a Companhia de Ônibus e Caminhões da Líbia com a ajuda dos fabricantes de carros italianos Fiat, embora, com o tempo, a participação original de 50% da gigante automobilística tenha diminuído gradualmente até se tornar uma questão totalmente líbia. Além disso, pequenas fábricas e negócios foram convertidos em cooperativas de acordo com o popular slogan “parceiros, não assalariados”. Mas isso nem sempre foi aplicado às grandes empresas da Líbia e, portanto, a revolução da Al Fateh era um fenômeno contínuo que ainda tinha muito a alcançar, se as idéias contidas no Livro Verde fossem fielmente implementadas.

A usura também foi proibida na Líbia e as pessoas que desejassem construir uma casa poderiam pegar emprestísmos de fundos públicos, pagando uma pequena quantia em torno de 7% a 10% pelo privilégio, certamente nada na escala dos juros exorbitantes cobrados pelas instituições bancárias ocidentais. O dinheiro foi então canalizado de volta para a economia pública.

Os supermercados eram de propriedade estatal, mas cada área tinha sua própria loja cooperativa, que incluía barracas de comida, fornecedores de eletricidade e oficinas de propriedade familiar; tudo sob o mesmo teto. A concorrência era controlada através da fixação de preços, algo praticamente inédito no Ocidente desde os antigos esquemas de “preço justo” da Idade Média. Os salários também foram limitados, proporcionando segurança econômica a todos os envolvidos.

A Líbia também aboliu a força policial estatal no final da década de 1980 e a substituiu pela Guarda Verde Popular, composta por pessoas comuns que vivem em uma área específica. O crime também era extremamente baixo no país, principalmente porque, diferente da Europa e da América do Norte, as pessoas ainda viviam entre suas grandes famílias e todo mundo conhecia todo mundo.

Num mundo impiedosamente controlado por poderosos bancos e corporações sem rosto, no entanto, esse grande experimento socioeconômico sempre se encontrava em rota de colisão com seus inimigos imperialistas. Em 20 de outubro de 2011, quando a Líbia estava em vias de ser derrubada por um exército de extremistas pseudo-islâmicos, elementos criminosos e mercenários estrangeiros – muitos dos quais haviam sido secretamente treinados pela OTAN – o líder da revolução, Muammar al- Gaddafi, foi eventualmente capturado e executado sem julgamento. O homem que eu admirava de longe por um quarto de século havia sido brutalmente assassinado a mando dos sionistas e a imagem chocante do rosto ferido e surrado de Gaddafi na tela da televisão é algo que jamais esquecerei.

Num sentido mais positivo, embora o Livro Verde tenha tido um enorme impacto em minha vida e tenha ajudado a moldar minhas próprias idéias políticas, sociais e econômicas, estou certo de que ainda pode ter o mesmo efeito benéfico para os leitores e ativistas da século XXI. Se não como um sistema político que ainda pode ser aplicado em nível nacional, certamente em termos da notável demolição da “democracia” ao estilo ocidental pelo autor.

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Nova Resistência
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2 comentários

  1. Não seria o caso de vocês reavaliarem a grandeza de Gaddafi, haja vista que é muito provável a sua implicação (no mínimo, com seu aval) na morte de Thomas Sankara (este, sim, um libertador)? Nesse caso, ele ficaria muito mais próximo da vontade francesa/americana que se cumpriu do que de um africanismo independente, de cunho revolucionário.

    • Não. Essas contradições existem e fazem parte do grande tabuleiro. Nem todas as figuras internacionais que apreciamos colaboraram ou simpatizaram umas com as outras.

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