Embora a crítica geralmente se refira a ”Deus e o Diabo na Terra do Sol” como principal filme do Glauber Rocha, aquele de que mais gosto, que penso ser a verdadeira obra prima do diretor, é o grandioso ”O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”.
Glauber conseguiu absorver alguns dos mais importantes movimentos cinematográficos de seu tempo: se nota a influência do faroeste italiano [spaghetti western], do neo-realismo italiano, do cinema francês de vanguarda. A temática também é marcada pela luta de classes e a denúncia da opressão social e histórica.
E, no entanto, o Glauber supera todos esses elementos, resolvendo-os em um atmosfera absolutamente popular, profundamente brasileira, e criadora de uma linguagem única. O filme é um ritual, um mito festivo, uma encenação onírica, e ao mesmo tempo crua, dura e perigosa como a lâmina de uma peixeira.
Tornou-se comum falar do filme como um misto de ópera e cordel; apesar de verdade, sempre me parece que falta algo nessa análise: aquela cantoria e dança do povo, que nos mergulha no sertão e no protagonismo da festa popular, e que o coronel cego e caricato, lutando pela manutenção do seu poder sobre a região e o povo, e contra a ascensão de novas formas de opressão [a agro-indústria vinculada ao imperialismo ianque], não consegue sustar.
A festa popular, a dança e os cantos, que ritualizam todo o filme e todos os eventos — dotando-os desse tom mítico-imaginário —, se alimentam da história e ao mesmo tempo se projetam nela. Um caminhão, um posto da shell, personagens cantando bossa nova e choro, referências a personagens históricos e ao processo geograficamente distante da industrialização, tentativas de culpar a bomba atômica [um assunto geopolítico pertencente quase que a outro mundo] por problemas locais e nacionais: todo esse pó dos eventos, indispensáveis para entender a grandeza da obra — e aos quais se pode acrescentar o cangaço, o coronelismo, o dilema dos personagens/grupos sociais — , só adquirem significado completo diante da continuidade e do Fio de Ariadne possibilitado pela cultura popular.
”O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” é, na minha opinião, a verdadeira pedra de fundação do cinema brasileiro. Não de um cinema que se produz no país. Não o primeiro ou o melhor filme já feito por brasileiros. Mas uma obra legitimamente de nossa gente, e em que o povo dita o ritmo, a narrativa, os meios e a estética.
A história vocês já conhecem: quase trinta anos depois de ter matado Corisco, Antônio das Morte fica sabendo que existe um cangaceiro alegando ser reencarnação de Lampião. Já mergulhado em uma crise existencial, de identidade e de propósito, o anti-herói e temível ”matador de cangaceiros” ruma para a pequena cidade Jardim das Piranhas para conferir a verdade do que ouviu. Naquele microcosmos, Antônio das Morte vai ficar frente a frente com o verdadeiro significado de Coirana e despertar gradualmente para seu papel na luta-símbolo do ícone de São Jorge, um mistério revelado sob a sombra de Santa Bárbara/Iansã em sua meditação matutina.
CORAINA: Tenho mais de mil cobrança pra fazer/Mas se eu falar de todas, a terra vai estremecer/Quero só cobrar as preferida do testamento de Lampião/Quem é hômi, vira mulher, e quem é mulher pede perdão/Prisioneiro vai ficar livre, carcereiro vai pra cadeia/Mulher dama casa na Igreja, com véu de noiva, na lua cheia/Quero dinheiro pra minha miséria, quero comida pro meu povo/Se não atenderem meu pedido, vou vortár aqui de novo”
ANTÔNIO: ”Tu é verdade ou tu é assombração?/Diga logo, cabra da peste/Eu de minha parte/ Não acredito nessa roupa que tu veste.”
COIRANA: ”Primeiro diga teu nome, fantasiado/Quem abre assim a boca, fica logo condenado”
ANTÔNIO: ”Pois aprepare seu ouvido e ouça/Meu nome é Antônio das Morte/Pra espanto da covardia/E desgraça da tua sorte/Mas uma coisa eu digo/No território brasileiro/Nem no céu nem no Inferno/Tem lugar pra cangaceiro.”
[…] “Le dragon du mal contre le guerrier sacré”, pierre angulaire du cinéma brésilien […]