Biopoder e a analítica da sexualidade

A modernidade, longe de ter reprimido o sexo, caracterizou-se por fazer dele uma profunda ênfase discursiva. [1] A explosão centrífuga e aberrante de uma miríade de sexualidades heterogêneas não foi acidental, mas advinda da articulação de poder em determinados nichos sociais sobrepostos. O dispositivo de aliança, que servia outrora como fundamento ao matrimônio e articulava-se no objetivo da homeostase do corpo social, foi substituído pelo de sexualidade, que “se liga à economia através de articulações numerosas e sutis” – objetiva-se, dessa maneira, o controle global: consiste-se na sujeição capitalista dos corpos e do sexo; no desenvolvimento de novas formas de poder e controle oriundas das atuais formas de relação. [2] A sociedade capitalista baseou-se na fomentação da sexualidade monetizada e contabilizada na economia dos prazeres. O conceito de família, que consequentemente está sujeita a essa atual configuração, continua a adaptar-se às novas exigências, deformando-se cada vez mais até que, de uma forma ou de outra, deixe de existir.

Todo este quadro pode ser traduzido na questão da biopolítica – utilização do biopoder na “administração dos corpos e gestão calculista da vida”. [3] A utilização do dispositivo de sexualidade na consolidação do controle torna-se um epítome que transcorre toda a vida hodierna, desenvolvendo-se no sentido de perscrutar todas as relações sociais em seu âmago. Dessa forma, o pós-liberalismo, em seu discurso libertário, abocanha as sexualidades e transforma-as em mercadoria; torna as construções sociais em torno do sexo em simples individualidades egocêntricas; aceita comportamentos sexuais desviantes em nome de uma abstração chamada liberdade. A analítica sexual torna-se a práxis de um fenômeno mais diverso e econômico, tornando-se instrumentação das novas formas de poder. [4]

É aí que se diz que a família burguesa não passa de um simulacro estéril – longe de ser o que tradicionalmente identificou-se com família, é uma forma submetida ao biopoder e às novas noções econômicas [5]. As novas relações sociais moldam-na e a deformam, buscam mobilidade e inovação. Ao menor sinal de impedimento, várias estratégias de dissolução e desmoralização são postas em prática através do dispositivo de sexualidade: este que se manifesta na clínica, na universidade, nas redes de comunicação. Se, como disse Nietzsche, matrimônio tem em si a afirmação da forma de organização maior e mais duradoura, o fim da família pontua-se como o impedimento de uma habilidade contestadora e, portanto, revolucionária – é a modernidade minando a possibilidade e instaurando a servidão. [6]

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[1] Michel, Foucault. História da Sexualidade: A Vontade de Saber (trad. de 2017), pág 38.

[2] Ibid. pág 116.

[3] Ibid. pág 150.

[4] Ibid. pág 160.

[5] Tal qual apontou Marx em seu histórico Manifesto, “a burguesia rasgou o véu de emoção e sentimentalismo das relações familiares e reduziu-as a mera relação monetária.”

[6] F. Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos (trad. de 2017), Crítica do Modernismo, página 105. Ele acrescenta também que “o matrimônio moderno perdeu sua significação; consequentemente está sendo abolido.”

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Matheus Bento de Souza

Graduando em Medicina pela Universidade Federal do Maranhão e membro da NR-MA.

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