Altered Carbon: o lado frio da imortalidade:

«Quando todo mundo mente, falar a verdade não é só uma rebeldia,
é um ato revolucionário»

(Takeshi Kovacs, Altered Carbon).

 

Sem entrar em muitos detalhes para evitar spoilers, abordarei alguns pontos sobre o argumento central de Altered Carbon, série baseada no livro de Richard K. Morgan. Mas antes de iniciar propriamente, é preciso falar um mínimo que seja acerca do clássico que inspirou o surgimento de produções como esta, isto é, do clássico que definiu as possibilidades temáticas que hoje caracterizam o gênero. 

No ano de 1982, era lançado nos cinemas o filme que mudaria o rumo do gênero de ficção científica e tornar-se-ia um símbolo da cultura cyberpunk: trata-se de Blade Runner. O filme, dirigido por Ridley Scott, à época já conhecido pelo lovecraftiano Alien (1979), é referência bíblica para quaisquer produções cinematográficas que trabalhem em cima da estrutura narrativa do gênero [1].

Blade Runner combina elementos do drama artístico com romantismo e poesia, além de administrar bem a ação: o paradigma cinema-arte, comum nos clássicos de ficção científica, mas que foi desaparecendo na medida em que o cinema foi ganhando um sentido mais comercial e se rebaixando ao simples entretenimento de massas. Em termos de narrativa, a inovação do filme passa também pela caracterização inicial dos “replicantes”, os humanos artificiais, como que representando o lado do “mal” a ser combatido, caçado pelos blade-runners (dentre os quais está o protagonista Rick Deckard), mas que, no desenrolar da história, vão sendo reinterpretados, de modo que o espectador vai criando uma identificação com os supostos “vilões”, que não são lá vilões de fato. Os replicantes são mais humanos que os seres humanos daquele mundo arrasado pelo capitalismo predatório. Se há um vilão no filme, são as corporações e as grandes empresas – a exemplo da Tyrell Corporation.

Apesar de tudo, Blade Runner não fez sucesso na época de seu lançamento. Seu auge veio por conta do VHS, que acabou sendo o formato que garantiu que a grande obra de Ridley Scot fosse conhecido e alcançasse o status de “cult” e de clássico do gênero de ficção.

Como já foi dito, Blade Runner é um filme científico e, concomitantemente, poético – em sua fotografia, nos planos aéreos líricos, nas falas dos personagens. Uma das mais belas cenas na história do cinema é o discurso derradeiro do replicante Roy Batty: “I’ve seen things you people wouldn’t believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched c-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die”.

E o que isso tem a ver com Altered Carbon?

Altered Carbon (“Carbono Alterado”, em tradução livre) é uma superprodução da Netflix que estreou no dia 2 de fevereiro deste ano. A série faz referência ao clássico dos anos 80, quer seja em sua estética noir, em sua ambientação, nos cenários grandiosos, quer no roteiro e na construção dos personagens. Em muitas situações, o cinéfilo apaixonado pelo clássico oitentista vai recordá-lo na série. No entanto, seria um erro dizer que Altered Carbon é só uma refilmagem com diferenças sutis, uma adaptação de Blade Runner para o formato de série televisiva. Não é nada disso. Altered Carbon tem suas distinções fundamentais e trabalha com outras referências (como a tão mencionada Ghost in the Shell, de 1995).

Em um futuro distópico, o homem prosseguiu com o ímpeto explorador de Colombo, buscando novas terras, novos horizontes. Conheceu outros mundos, colonizou outros planetas. Conheceu novos sistemas e galáxias. O homem, enfim, por meio de engenharia reversa, aprendeu sobre a tecnologia alienígena e descobriu como, a partir desta tecnologia, ele poderia vencer algo que vem assombrando a humanidade desde os tempos remotos: a morte. Basta que a consciência (ou a alma espiritual) seja digitalizada em um cartucho (FHD) acoplado na coluna vertebral, na base da nuca. Se o corpo (ou como é chamado, “a capa”) morre, ou sofre um dano orgânico, basta trocá-lo por outro como se troca de roupa – basta inserir o FHD, cirurgicamente, no novo corpo (ou capa).

No entanto, não são todos – é claro – que podem pagar por isso. A mortalidade continua existindo para os pobres, os terrenos, que seguem experimentando a “morte real”. A imortalidade pertence aos ricos, que vivem em mansões estratosféricas e que, depois de alcançarem um longo período de vida, passam a ser chamados de matusas (alusão à figura bíblica do Patriarca Matusalém, que viveu 969 anos, citado em Gêneses 5:21-27).

Os matusas são majoritariamente tidos como deuses. Eles próprios se creem deuses, isto é, além do bem e do mal. Enquanto é adorado por uma multidão de pobres e doentes, uma dos principais personagens na trama confessa a Takeshi Kovacs, um homem ressuscitado após 250 anos, a sua vontade de ser Deus:

“Quem são os deuses mais poderosos do mundo? Odin. Júpiter. Zeus. Um colosso raramente é um jovem. Ele é pai. Ele tem muitos filhos”.

O que há de interessante neste discurso – além de revelar o desejo de endeusamento do matusa – é a relação entre velhice e sabedoria, fazendo coro os antigos, que representavam a figura do sábio como sendo um ancião.

O personagem em questão, no caso, se chama Bancroft e possui uma “capa” de um homem maduro, tendo muitos filhos. Por mais sórdido que seja, Bancroft diz algumas verdades. A série não cai no clichê de colocar belas palavras apenas na boca dos “mocinhos”. A imortalidade cansa, a vida se torna mais vazia. A realidade não mais satisfaz o apetite dos imortais, destes ricos entediados. O resultado é geralmente o sadismo, a busca por suprir a necessidade de prazer e alegria na perversão, infringindo sofrimentos nos outros. Sim, é uma crítica já feita no livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e no mito dos vampiros, que vivem para a eternidade e não são mais capazes de sentir o gozo da vida: a insatisfação de uma existência sem cor é a consequência desse tipo de imortalidade prometida pela tecnologia de transformação da matéria. No final das contas, trata-se de uma imortalidade que se converte em um tipo de morte: não há mais vida naquela existência. Como vampiros, os matusas são uma espécie de sombra na terra – e já não ensinavam as tradições místicas que a felicidade tem um sentido espiritual?

É contra esse sistema que lutam os emissários, que, na série, encarnam o ideal revolucionário. Os emissários não aceitam aquela “realidade”, e buscam voltar ao estado de coisas anterior à tecnologia de base alienígena. Os emissários lutam contra a imortalidade terrena. Neste sentido, pode-se arriscar dizer que são verdadeiros defensores do Espírito (embora a mensagem não esteja tão explícita no roteiro).

A essa altura, o leitor já deve ter percebido uma sequência de críticas à configuração do mundo atual. Uma distopia, como uma utopia, tem a força de apresentar o que há de errado na realidade presente, ou de reforçar a percepção do erro. Pretensos realistas eventualmente são idealistas que não reconhecem seu idealismo ruim, fazendo a crítica superficial do pensamento utópico, mas sem perceber que a utopia é um instrumento de reflexão filosófica. Esses “realistas” são mais abertos ao uso da distopia, por exemplo, de livros como 1984, do anarquista George Orwell. E não só eles. O ser humano tem uma maior apreciação por narrativas pessimistas, já que são mais impactantes, intensas. Entretanto, a distopia não difere, como se percebe, da utopia na finalidade crítica. Ambas, utopia e distopia, são descrições imaginativas de grande valor filosófico.

Resumidamente, a ideia medular de Altered Carbon é de que, em um contexto capitalista-liberal, a tecnologia desenvolve-se em prejuízo do lado humano. Em uma visão nietzschiana, a destruição do sentido humano é positiva, mas para alcançar a superação – e é claro que a destruição do humano pela sociedade tecnocrática não visa à superação. O avanço das máquinas não seria, certamente, algo como uma superação do humano no sentido nietzschiano, pois a superação do humano consiste em fazer com que o homem alcance um novo estágio evolutivo, rompendo com o atual, com base no critério de força, da Afirmação da Vida. Já o desenvolvimento tecnológico no contexto capitalista é realizado sem um sentido superior, sem qualquer relação com a melhora da condição humana tal como ela é hoje. Neste sentido, o avanço da técnica seria, em termos nietzschianos, um sinal da decadência cultural e da radicalização do “último homem” (o inverso do além-do-homem).

 

   «Ao contrário do que se afirma hoje, a humanidade não
representa uma evolução para algo melhor, mais forte ou
mais elevado. O ‘progresso’ não passa de uma ideia moderna,
 ou seja, de uma ideia falsa. O europeu moderno tem bem
menos valor que o europeu do Renascimento. Desenvolver-se
 não significa forçosamente elevar-se, aperfeiçoar-se, fortalecer-se»
(Nietzsche, O Anticristo, 1895).

 

O pensador de Floresta Negra, Martin Heidegger, no mesmo sentido, já apontava para o risco do desenvolvimento da técnica maquinística, da valorização desta em detrimento da valorização do próprio homem: não adianta a humanidade dispor de calculadoras quânticas se o homem acabar sendo substituído por elas no meio do processo. A técnica deve auxiliar o homem em sua relação com o mundo, não substituí-lo. A crítica de Heidegger à sociedade tecnológica, no entanto, não vai no sentido de estabelecer esforços para abandonar a técnica que auxilia o homem no enfrentamento dos desafios de seu existir-no-mundo, antes, trata-se de uma crítica cuidadosa que reconhece o valor da técnica e que busca definir uma “nova relação” para ela. E se não for definida uma “nova relação”, o homem estará fadado ao ser-máquina.

Na configuração atual de mundo, que produz certo tipo de homem, o pensar reflexivo do ser é impossibilitado. Não é preciso haver uma inteligência artificial para confrontar a inteligência humana: os sistemas computacionais de agora, que já são inteligências artificiais com limitação determinada, já fazem isso. A inteligência humana, o próprio ser humano, está sendo derrotado pelos sistemas que criou. E, acima de tudo, todo esse desenvolvimento tecnológico é sustentado pela exploração do homem e do mundo da natureza. O dano ao meio ambiente é inevitável nesse contexto.

Neste exato momento, o leitor deve lembrar de Matrix. Pois sim, Matrix é um filme de crítica semelhante e, vale dizer, também inspirado em Blade Runner. Neles prevalece uma crítica de base marxista e, em algum grau, heideggeriana. Com Altered Carbon, a mesma coisa. Todavia, a série não é pretensamente original. Os criadores sabem de sua limitação temática e do que já foi abordado em obras anteriores. Mas uma produção não-original tem seu valor de reafirmação da crítica, na medida em que a produz para o conhecimento das novas gerações.

Mas nem tudo são flores. Apesar de trazer a oportunidade de reflexão, de discutir tais temas filosóficos expostos aqui, a série tem seus defeitos, é preciso dizê-lo. Um exemplo são os excessos de tramas paralelas. Em outra série também produzida pela Netflix, Dark, acontece a mesma coisa: há momentos em que o espectador desatento pode perder-se. Contudo, em Dark, existe uma justificação que torna o paralelismo narrativo menos problemático. Já em Altered Carbon, não. Dentro daquele modo de contar uma história, as tramas paralelas devem ser limitadas a um dado número, diferente do que ocorre (essa é uma crítica que tem sido feita à série, mas o espectador pode discordar).

Além do mais, a série Altered Carbon tem, como a maioria das obras da atualidade, elementos ideológicos que são criticáveis. Mas é algo que pode ser relevado, considerando que os pontos positivos superam os negativos. De todo modo, fica aí a indicação de uma ótima série para apreciar.

______________________________________________________________

[1] No Brasil, foi acrescentado o subtítulo desnecessário, e também impreciso, O caçador de Androides (sendo rigoroso, os replicantes não são exatamente androides, e sim ciborgues, organismos cibernéticos com um tempo datado de deterioração).

Imagem padrão
Rômulo Cézar

Graduando em Direito e membro da NR-PE.

Artigos: 54

Um comentário

  1. Sobre a nota 1, na realidade os replicantes de Blade Runner são sim adróides, visto que este termo se refere a seres de forma masculina (andros), bem como ginóides, quando tem forma feminina. O termo neutro mais correto seria ‘antróide’ (de antros). Tecnicamente, ciborgues são seres híbridos que mistura partes artificiais com naturais, e nesse caso saber se os replicantes preencheriam tal designação já é mais complexo, visto que aparentam ser totalmente artificiais, mesmo sendo vivos.

Deixar uma resposta