Black Mirror é uma série de curtas-metragens que explora as relações subversivas entre humanos e sistemas digitais. Sua quarta temporada, que foi ao ar bem no final do último mês de 2017, prossegue nessa linha, com seis episódios que lidam com a imanência da tecnologia nos diversos contextos sócio-políticos.
Com narrativas que problematizam uma constelações de temas concernentes ao campo da ética, do direito, da psicologia, da antropologia filosófica e da filosofia política, no plano estético, a série opta, ao menos na maior parte do tempo, por manter um certo distanciamento estratégico do panorama ultra-futurista que caracteriza determinadas produções do gênero sci-fi. Ao invés de um universo cyberpunk e mega-industrial repleto de carros voadores e máquinas de teletransporte, inscrito num futuro em longo prazo, seus plots ocorrem em contextos urbanos muito próximos às grandes cidades de nossos dias e estabelecem, como cimento narrativo, angústias e sofrimentos que são humanamente familiares ao telespectador: relacionamentos fugazes, luto, vícios, vida após a morte, culpa, pais super-protetores, crianças criadas em redomas de vidro, perversões sexuais, hedonismo, sadismo, dentre outras coisas, potencializadas, re-significadas e contornadas pelo elemento tecno-digital, narrativamente estruturado num futuro a curto prazo e que se manifesta nos termos de uma verdadeira transmutação da máxima hobbesiana, onde a máquina aparece como o lobo do homem: em Metalhead, penúltimo episódio da temporada, literalmente, e em Crocodile, figurativamente.
Em todo caso, o que Black Mirror delineia é a emergência de uma pós-humanidade, ou seja, de um fenômeno de emancipação progressiva do homem de sua última conexão supra-individual (após terem sido dilapidadas todas as noções pretéritas de coletividade, da família ao sexo biológico e ao gênero), a saber: a própria humanidade.
É neste sentido que o tema da imersão da consciência, já esboçado nos anos anteriores da série, retorna com força nesta quarta temporada, permeando o enredo de praticamente todos os episódios. Os eventos de SS Callister, episódio de abertura, por exemplo, se passam majoritariamente dentro da plataforma Infinity – game online capaz de inserir seus usuários no interior do jogo através de um micro-dispositivo colocado na lateral do crânio do jogador. O episódio ocorre dentro da versão do desenvolvedor, restrita apenas ao criador da plataforma, o programador antissocial Robert Daly, que constrói um universo virtual composto por clones digitais de seus desafetos na vida real – criados a base de um scanner de DNA. Daly, que apesar de seu brilhantismo, é uma espécie de loser, ao entrar na plataforma, transforma-se numa deidade soberana, num artífice, onipotente e capaz de torturar, pela eternidade, aqueles que tanto o desprezam no cotidiano extra-cibernético.
A questão jurídico-político-filosófica que surge, então, é: os clones digitais criados por Daly, a partir do DNA de seus correlatos no mundo real, uma vez que dotados de consciência, sesciência, processos cognitivos, memórias, são entes humanos? Se não, o que eles são? Meros caracteres dispersos numa circuitaria neuro-replicante impessoal? Então como explicar suas memórias e percepções? Seria correto afirmar que se tratam, logo, de pós-humanos, na caracterização ofertada pelo filósofo Aleksandr Dugin acerca do indivíduo puro, liberto de seu corpo físico e portador da imortalidade, uma vez que, sendo sua humanidade ultrapassada, “já não haverá nada nele que possa morrer”?
E o que dizer dos procedimentos de “transfusão” de mentes, de corpos mortos, ou em coma, para corpos vivos e já plenamente conscientes, encabeçados pela corporação TCKR e narrados em Black Museum? Qual é o estatuto ontológico de uma pessoa com duas consciências (a sua e a de um ente querido cujo corpo se tornou disfuncional) e qual é o estatuto antropológico de uma consciência que vive como hóspede num corpo que lhe é alheio?
Ao produzir narrativas capazes de gerar problemáticas símiles, Black Mirror transforma-se num gigantesco experimento de pensamento, prato cheio para ponderar sobre a radicalização do paradigma da técnica moderna na contemporaneidade política, em seu movimento de “racionalização de tudo” (gestell) e de enquadramento de todas as coisas numa escala historial-ontológica que aglutina o homem e a totalidade dos entes numa esteira de digitalização irreversível.
OBS: Arkangel, episódio 2 da temporada, é uma micro-distopia que emula a tendência de certos pais a criarem filhos frágeis, despreparados para o mundo e despidos de recursos egoicos para lidar com o caráter brutal da realidade. Destoa levemente da tônica pós-humanístico, mas nem tanto. Um dos melhores episódios da série até hoje.