A onça pintada é, para mim, o mais fascinante animal brasileiro, o terceiro maior felino, só ficando atrás do tigre e do leão. Uma onça destroçaria facilmente um leão da montanha norte americano (puma), algo que é carregado de simbolismo: a onça é a rainha da América, o Leão é o rei africano, e o tigre, um grande anarca-eurasiático. A priori, quando pensamos em um mundo multipolar, a primeira divisão é a continental, a felina. E o maior felino de todos é o tigre siberiano, que caminha livremente na Eurásia, significando o poder máximo terrestre, dominando a Rússia e a China – é definitivamente a encarnação animalesca da Heartland.
Mackinder nos diz que a conquista russa da Sibéria teve consequências quase tão profundas e drásticas quanto as grandes navegações e, usando a lógica de Schmitt, poderíamos dizer que aquilo que foram as Grandes Navegações para os espanhóis e portugueses, e que acarretou em uma Revolução Espacial Planetária que mudou a forma de ver o mundo, ocorreu de forma semelhante na conquista da Sibéria: uma Revolução Espacial Regional.
As grandes navegações exigiram a vitória sobre a baleia, o domínio sobre a dominadora dos mares, sua caça. Já a conquista siberiana exigiu o enfrentamento do maior felino da Terra: a Sibéria impunha coletivismo para viver, exigia austeridade (a frieza do ambiente exige frieza psicológica): era necessário hierarquia social, heroísmo, valores solares, fidelidade e honra, resultando em uma estruturação social bem distinta da marítima.
É na Eurásia Central que se funda o primado da força terrestre, local da principal disputa geopolítica na qual se debatem Brzezinski, Haushofer e tantos outros. Também é na Eurásia que se fez, milênios atrás, a rota da seda, passando pela estrada real persa e pelo baixo tigre.
Hoje, a Eurásia Central, pela magistral ferrovia Transiberiana, interliga Europa e Ásia. O audacioso projeto falado por Putin, conectando “Lisboa a Vladivostok”, significaria o reerguimento total da força terrestre – muito embora seja uma ideia geopolítica bem mais antiga que Putin, praticamente orgânica e oferecida pela própria geografia, tal como novas rotas da seda (porém, mais acima e mais diversificadas, como o monumental projeto CAREC de transporte de recursos).
Uma Eurásia interligada por terra, com a gama de recursos e economia que tem, significaria instantaneamente um rival à altura e uma ferida quase mortal no atlantismo, que tenta fazer valer sua influência estabelecendo rotas marítimas e tragando a Europa Ocidental e Oriental para si.
Um outro simbolismo pode ser notado: onde persistem as Tradições, persistem os grandes felinos. A Europa Ocidental não mais os possui – estão extintos ou enjaulados, tal como as forças da Tradição. E a forma de encontrar alguma vida é permitindo a fusão, permitindo o grande Tigre Siberiano caminhar sobre suas terras, para, como num sopro ou rugido, trazer novamente as antigas forças europeias, fazendo sair à luz solar o Leão da Caverna que um dia ali reinou – animal antigo e gigantesco, adorado e cultuado na pré-história europeia, gravado em diversas pinturas rupestres. Rapidamente, o Leão da Caverna, extinto e congelado na última era do gelo, seria descongelado pelo rugido do Tigre siberiano, trazido de volta à vida com toda sua força e vigor, espantando as pilhagens e saques da águia norte-americana, que não mais pousaria em tais terras: apenas sobrevoaria, como um urubu, esperando novamente forças mortas, carcaças, para se alimentar, porém incapaz de enfrentar a vida em seu pleno vigor.
Nas Américas, a Onça Pintada reinou e ainda reina. Nos antigos impérios americanos, nas civilizações Maia, Asteca e Inca sempre possuiu uma posição sagrada, de destaque, admiração e força. Hoje, a Onça une a força Latino Americana, vivendo por quase toda essa região, e fincando as garras mais fortemente no Brasil.
Também tivemos a nossa “conquista da Sibéria”, o bandeirismo, a conquista do Oeste com as bandeiras, tal como a “bandeira de limites” de Raposo Tavares: conquistadores que viajaram por mais de 10 mil quilômetros a pé. É aqui que ganhamos nossa força terrestre, a coroação da rainha, a conquista da Onça, esta representando o dinamismo, a adaptabilidade, a força unida à exuberância, uma certa flexibilidade e fluidez na lida com o meio – a Onça é astuta, ágil, indecifrável, camuflada e mortal. A Onça, que os mitos e contos amazônicos e pantaneiros ressoam, aquela que é capaz de quebrar o mais duro casco de tartaruga com uma mordida, ela recapitula o espírito felino mais profundo da América Latina.
Extinta na América do Norte, local do âmago das forças de dissolução, a Onça pintada é uma América Latina Unida, diversificada, fluida, exuberante e forte, que estraçalharia facilmente o Puma norte americano – caso este tentasse uma invasão. O Puma de pouca cor, massificado e homogeneizado, pode mesmo representar a diminuição das forças da Tradição nos EUA, sua sobrevida.
Por fim, o Rei da Savana, os leões Africanos fazem lembrar as disputas de clãs sanguinolentos africanos, uma África de milhares povos pulverizados, de milhares de Reis, distribuídos em pequenas povoações. Hoje a África é dividida artificialmente: clãs e povos são unidos de forma forçosa, em fronteiras e linhas artificiais, e os leões, igualmente, são restringidos e delimitados às reservas ambientais, fazendo com que destruam uns aos outros.
A África é pilhada de forma condizente com a brutal diminuição das populações leoninas: o rei encontra-se ajoelhado, espremido, cercado, sem sua juba e potência. Porém, é possível um renascimento, um exército de Reis, um exército de leões novos que se juntam para expulsar o forasteiro, fazendo renascer as antigas lendas africanas do leão que sabia voar, e que, assim, era capaz de caçar qualquer animal – seus ossos não mais estariam quebrados pelo Grande Sapo –, trazendo o leão de pele impenetrável para os mortais, tal como o Leão de Nemeia: uma África impenetrável à ingerência.
A Multipolaridade é, em primeira instância, Felina: é a América do Norte e a Inglaterra cercadas ao Sul por uma Onça, ao Leste e Sudeste por um Leão, e à Oeste, Leste e Norte pelo Tigre Siberiano.
Aqui os grandes felinos não representam forças de dissolução, mas forças caóticas originárias que formam os povos, que dão seu espírito e essência, e que andam lado a lado, só se deixando montar por aqueles a quem respeitam, para realizar ataque e defesa, sendo a montaria, no fundo, uma integração – o Guerreiro é, então, em parte Onça, em parte Tigre, em parte Leão.
Por último, uma última coisa que me fascina é a área de vida de uma Onça, que pode ser muito mais que 100 quilômetros quadrados: na vida moderna, estamos habituados a dizer que nosso quintal é um cubículo que possui, quando muito, uma balança e uma árvore – é uma visão de mundo distorcida. Sempre considerei meu quintal a profunda mata atlântica que começa no Horto florestal e se estica por toda Serra do Mar. A liberdade felina nos diz muito: o Sertão é o quintal do sertanejo, o mar o quintal das populações litorâneas, o interior e a Mata Atlântica o quintal do paulista, o pampa o quintal gaúcho e assim por diante.
Perdemos a nossa conexão com a terra – a ligação com o espaço se dá como a de um visitante, um estrangeiro, um estranho, e não como alguém que domina e vive também neste ambiente, que considera a terra como sua: a terra que era pública e era nossa, a cada dia é de ninguém e, ao mesmo tempo, das grandes corporações, e nós voltamos a ficar em apartamentos (assim como bichos em suas reservas), mortos e espremidos, mas carregando, sempre, o vigor da terra, pronto para renascer a qualquer instante, dependendo unicamente de coisas que muitas vezes chegam a ter entonação sagrada: a Vontade e a Ação.