Jean Thiriart e a Rússia: o território livre da Europa

Com base nas análises das teorias geopolíticas do belga Jean-François Thiriart e diante dos acontecimentos dos últimos meses, quais as relações entre a Rússia soberana e a dominação democrática e liberal que assola o restante da Europa?

Por Claudio Mutti

O ano de 2022 marcará o centenário do nascimento e o 30º aniversário da morte de Jean Thiriart (1922-1992), um “geopolítico militante” de que a revista Eurasia tratou em diversas ocasiões, colocando à disposição do público italiano numerosos artigos publicados por ele em reportagens jornalísticas, que agora são praticamente impossíveis de se encontrar.

Defensor implacável e incansável da necessidade histórica – numa Europa dividida entre o bloco atlântico e o bloco euro-soviético – de “construir uma grande pátria: uma Europa unitária, poderosa e comunitária”, Thiriart afirmou em 1964 as dimensões geográficas e demográficas: “No quadro de uma geopolítica e civilização comuns (…) uma Europa unitária e comunitária se estende de Brest a Bucareste. (…) Diante dos 414 milhões de europeus, há 180 milhões de habitantes nos Estados Unidos e 210 milhões de habitantes na União Soviética.”

Concebido como uma terceira força soberana e armada, independente de Washington e Moscou, o “Império de 400 milhões de homens” previsto por Thiriart deveria estabelecer uma relação de coexistência com a União Soviética baseada em condições precisas: “Uma coexistência pacífica não será possível até que todas as nossas províncias do leste tenham recuperado sua independência. A abordagem pacífica de Moscou começará no dia em que a União Soviética retornar às fronteiras de 1938. Mas não antes: qualquer forma de coexistência que envolva a divisão da Europa é um engano.”

Segundo Thiriart, a coexistência pacífica entre a Europa e a União Soviética encontraria seu resultado mais lógico em “um eixo Brest-Vladivostok”: “Se Moscou quer preservar a Sibéria, deve fazer a paz com a Europa, com a Europa de Brest a Bucareste, repito. A União Soviética não tem, e terá cada vez menos, forças para segurar Varsóvia e Budapeste, por um lado, e Chita e Khabarovsk, por outro. Terá que escolher, ou arriscará perder tudo. (…) O aço produzido no Ruhr poderia muito bem ser usado para defender Vladivostok.”

O eixo Brest-Vladivostok teorizado na época por Thiriart parecia ter antes o sentido de um acordo que visava definir as respectivas zonas de influência da Europa unida e da União Soviética já na primeira metade da década de 1960 Thiriart continuou a raciocinar em termos de geopolítica “vertical”, levando-o a pensar em uma lógica “euro-africana” em vez de “eurasiana”, ou seja, a esboçar uma extensão da Europa a partir de Norte para Sul e não Leste para Oeste.

O cenário traçado em 1964 foi desenvolvido por Thiriart nos anos seguintes, de modo que em 1982 o pôde definir assim: “Não devemos mais raciocinar ou especular em termos de conflito entre a União Soviética e nós, mas em termos de reaproximação e então de unificação. (…) Devemos ajudar a União Soviética a se completar na grande dimensão continental. Isso triplicará a população soviética que, por isso mesmo, não poderá mais ser uma potência com caráter russo dominante. (…) Será a física da história que obrigará a URSS a procurar costas seguras: Reykjavik, Dublin, Cádiz, Casablanca. Além desses limites, Moscou nunca terá tranquilidade e terá que viver em constante preparação militar. Isso é caro”.

A essa altura, a visão geopolítica de Thiriart havia se tornado abertamente eurasiana: “O império euro-soviético (lemos em um de seus artigos de 1987) faz parte da dimensão eurasiana.” Este conceito foi reiterado por ele no longo discurso que proferiu em Moscou três meses antes de sua morte: “O Império Europeu é, por postulado, Eurasiano.”

A ideia de um ‘Império euro-soviético’ foi formulada por Thiriart em um livro escrito em 1984 e publicado postumamente em 2018. Em 1984, ele escreveu: “A história concede aos soviéticos a herança, o papel, o destino que, por um breve momento, havia sido atribuído ao Reich: a União Soviética é a principal potência continental da Europa, é o coração dos geopolíticos. O meu discurso de hoje dirige-se aos chefes militares deste magnífico instrumento, o exército soviético, instrumento que carece de uma grande causa.”

Com base na constatação de que no mosaico europeu formado pelos estados satélites dos Estados Unidos e da União Soviética, o único estado verdadeiramente independente, soberano e militarmente forte era o estado soviético, Thiriart atribuiu à União Soviética um papel semelhante a este desempenhado pelo Reino da Sardenha no processo de unificação italiana e pelo Reino da Prússia no mundo germânico, ou, para citar um paralelo histórico mais antigo proposto pelo próprio Thiriart, pelo Reino da Macedônia na Grécia no século IV antes de Cristo: “A situação da Grécia em 350 a.C., fragmentada em cidades-estados rivais e dividida entre as duas potências da época, Pérsia e Macedônia, apresenta uma analogia óbvia com a situação da atual Europa Ocidental, dividida em pequenos e fracos estados territoriais (Itália, França, Inglaterra, Alemanha Federal) submetidos às duas superpotências”.

Portanto, assim como havia um partido pró-macedônio em Atenas, teria sido oportuno criar um partido revolucionário na Europa Ocidental para colaborar com a União Soviética; Este partido, além de se libertar das amarras ideológicas do dogmatismo marxista incapacitante, teria que evitar qualquer tentação de estabelecer a hegemonia russa sobre a Europa, ou então seu esforço teria inevitavelmente falhado, assim como a tentativa de Napoleão de estabelecer a hegemonia francesa sobre o continente. “Não se trata de preferir um protetorado russo a um protetorado estadunidense”, Afirmou Thiriart. Não, tratava-se de fazer com que os soviéticos, que provavelmente não eram conscientes disso, descobrissem o papel que podiam desempenhar: engrandecer-se, identificando-se com toda a Europa. “Assim como a Prússia, ao se expandir, tornou-se o Império Alemão. A União Soviética é a última potência europeia independente com uma força militar significativa. Carece de inteligência histórica.”

A União Soviética não existe há trinta anos. No entanto, a Federação Russa, com seu vasto território que se estende da Crimeia a Vladivostok, é hoje, como a União Soviética em 1984, o único estado verdadeiramente independente e soberano em uma Europa que está dividida em uma multidão de pequenos estados submetidos à hegemonia de Washington.

Na verdade, o único território europeu que não é ocupado por bases militares dos EUA ou da OTAN é o território russo. O único exército que não faz parte de uma organização militar dominada pelos Estados Unidos da América é o da Federação Russa. A única capital europeia que não precisa pedir permissão aos Estados Unidos e ser responsabilizada é Moscou. E mesmo no plano espiritual e ético, só a Rússia defende esses valores, patrimônio da autêntica civilização europeia, bem como de qualquer civilização normal, que são alvo da massiva ofensiva desencadeada pelos bárbaros do Ocidente. “Contra os fundamentos de todas as religiões do mundo e contra o código genético das civilizações, a fim de derrubar todos os obstáculos no caminho do liberalismo.” São as palavras do chanceler russo, Sergei Lavrov, que, em análise publicada na revista russa Russia in Global Affairs, denunciou o perigo mortal da “guerra travada contra o genoma humano, contra toda ética e contra a natureza”.

Em uma Europa que agora é incapaz de imaginar a possibilidade e a legitimidade de um regime político diferente do democrático que lhe foi imposto nas duas fases sucessivas de 1945 e 1989, só a classe dominante russa sabe que a democracia de forma alguma é a única forma de ordem possível, indiscriminadamente válida em todo o mundo, independentemente das especificidades étnicas, culturais e religiosas. Por exemplo, comentando sobre a intervenção dos EUA no Afeganistão, Sergei Lavrov disse: “A conclusão mais importante é provavelmente que ninguém deve ser ensinado a viver, muito menos forçado a viver”; e relembrou os casos do Iraque, Líbia e Síria, onde “os norte americanos queriam que todos vivessem como eles (os ianques) quisessem”.

Poucos dias antes, em 20 de agosto de 2021, Vladimir Putin havia dado uma lição semelhante de realismo político a uma Europa encurralada pelo ‘Moloch universalista’, nas palavras de um filósofo admirado e lido pelo presidente russo, Vissarion G. Belinskij (1811-1848). Putin disse: “Não se pode impor o seu modo de vida a outros povos, porque eles têm tradições próprias. Esta é a lição do que aconteceu no Afeganistão. A partir de agora, a norma será o respeito às diferenças, porque a democracia não pode ser exportada, gostem ou não.”

A razão do discurso de Putin foi uma entrevista coletiva de imprensa com o chanceler alemão na qual ele relembrou as palavras visionárias de Dostoiévski: “A Alemanha precisa de nós mais do que pensamos. Ela não precisa de nós apenas para uma aliança política temporária, mas para uma aliança eterna. A ideia de uma Alemanha reunificada é grande e majestosa e tem suas raízes nas brumas do tempo. (…) Dois grandes povos, portanto, estão destinados a mudar a face deste mundo.”

Hoje, não é apenas a Alemanha que precisa da Rússia, mas toda a Europa, que agora está perto do ponto crítico que Dostoiévski imaginou quando previu que “todas as grandes potências da Europa acabarão sendo aniquiladas, pela simples razão de que serão desgastadas e subvertidas por tendências democráticas”, e que a Rússia só teria que esperar “até o momento em que a civilização europeia dê o seu último suspiro, para retomar seus ideais e objetivos. “

Certamente, a situação atual não incentiva a Rússia a considerar, mesmo como possibilidade teórica, assumir o papel de potência vinculante na Europa. No entanto, se Moscou ainda carece do que Jean Thiriart chamou de “inteligência histórica”, necessária para conceber o grande desígnio de libertar a Europa da ocupação americana e construir uma superpotência imperial entre o Atlântico e o Pacífico, as condições objetivas sob as quais a Rússia terá de enfrentar os próximos anos provavelmente favorecerão o nascimento de tal inteligência.

Fonte: Adáraga
Tradução: Lucas Ariotti – NR PR

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Claudio Mutti

Filólogo, estudioso do tradicionalismo e diretor da revista Eurasia, Rivista di Studi Geopolitici.

Artigos: 597

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