Quis est Katechon?

Por Massimo Cacciari

O grande paradoxo na idéia do katechon cristão é que, enquanto ele retém a possibilidade do apocalipse e acorrenta o Anticristo, por conseguinte, ele impede o Juízo Final e assim, a salvação. Do mesmo modo, num tempo de decadência e exílio político dos grandes imperadores, como podemos sequer conceber tal figura: quem, quando e onde?

As ideias que recebemos de poder, soberania e a relação entre o político e o religioso, autoridade civil e espiritual, continuam a proceder, embora raramente o percebamos, de um amontoado de questões político-ideológicas que emergem das relações descritas. São questões que a secularização como dissolução de toda ideia de época obscurece em si mesma em vez de resolvê-las ou superá-las.

Nós já reconhecemos a contradição fundamental que compromete a figura do katechon: Se for pra valer (se essa deve valere), será ou terá de tentar ser inevitavelmente um império, mas este competirá necessariamente com outras autoridades para representar a Era. Só assim poderá sua potestas conter, amarrar e reter a anomia. Ao mesmo tempo, a reivindicação de representar o sentido último da Era dentro de um período é o próprio sinal da anomia. Da sua parte, a Igreja afirma saber e esperar ansiosamente o Fim com certa esperança de que é o lugar onde a Era se representa enquanto nunca aceitando reivindicação similar de outro poder.

Quando falamos do eschaton, cada império deve deixar sua última palavra para o peregrino, o civis futurus, a comunidade que na terra representa a vera imagem da politeia em ouranois, a cidadania celestial. Esta é a única cidade sagrada, o único bem prometido por Deus, e toda a esperança cuja semente é preservada no coração daquele que crê se volta para ela. (Agostinho, Salmo 105).

Mas como poderia o civis futurus não afirmar falar sobre todos aspectos da vida civil, especialmente quando o sentido último da história compartilha só pode ser inteiramente compreendido sob a luz do eschaton. Essa é uma assimetria irrepreensível e intolerável para o poder imperial. E por que não para um poder meramente katechôntico? Ele pode ser brandamente capaz de tolerar os sermões da autoridade espiritual, mas ao custo da impotência, até para simular alguma auctoritas e assim se mostrar a cada dia incapaz de cumprir seu officium, sua missão, como barreira contra a anomia.

Como podemos conceber uma oposição ao avanço da anomia em um contexto apocalíptico se permanecemos indiferentes ao sentido de eschaton? Tal oposição teria apenas a marca de uma vontade autárquica de permanência, um desejo de viver mas não de oposição ao Adversário; talvez até um sinal de cumplicidade dissimulada? Mas se como parece ser o caso o katechon deseja tornar-se o representante da Época e assim assumir uma fisionomia imperial, dever conter, prender e reter acima de tudo aqueles que lhe disputem ou neguem a autonomia ou poder de constituir a lei pelas próprias características do império. Isso implica uma oposição à comunidade escatológica. Como poderá o katechon fazer o seu trabalho de forma produtiva e construtiva se ele se encontra, ao menos sob uma guisa, a serviço do Adversário, espírito de apoleia, de destruição? De todo modo, se o poder katechôntico é forçado a uma função exclusivamente funcional/instrumental ou assume forma império, parece arriscar a si nas bordas ou no interior do reino temporal [1], do iníquo. Se esse é o fim, então a anomia do segundo não pode mais simplesmente aparecer como ausência de nomos. Tal é o poder último avançando diante do Julgamento Final, em todos os sentidos. Está presente no comandante, é hierarquia, organização e devoção. A catástrofe final não se anuncia com caos anárquico nem na selvageria do guardião da floresta de Jünger em Sobre as Falésias de Mármore, mas através de uma metamorfose da forma imperial na figura de um império inédito (in-audito) que subjuga tanto o katechon quanto a autoridade terrena enquanto batalha com a Igreja pela supremacia espiritual.

Antes de abordarmos a última questão, devemos olhar mais de perto para as características do katechon que podem ser ‘sequestradas’ pelo império e então inquerir sobre a relação ou compromisso que a autoridade espiritual possa tentar estabelecer com ele.

Quid o quis est katechon? Ou, o que é o katechon? O contexto do sermão paulino (tanto na Pseudepigrafia quanto nas duas cartas aos Tessalonicenses) é a escatologia de Mat. 23-24 (e seus paralelos com os Evangelhos segundo Marcos e Lucas), da Primeira Carta de João, do Livro do Apocalipse e mais recentemente na literatura cristão, o Didaquê, 16: 1-7. O Adversário que se apresenta como Deus demanda a devoção como a do Deus Uno, e uma luta contra Deus sobre o mesmo terreno do mais rigoroso monoteísmo (‘Rejeitará os ídolos para fazer acreditar que ele é Deus’, LEÃO, Irineu de. Contra as Heresias, livro V, 25,1; a propósito, Irineu é o primeiro a citar a Segunda Carta aos Tessalonicenses). Esse Adversário não pode ser confundido com qualquer forma de nostalgia reacionária, politeísta ou pagã, e só será derrotada pelo sopro do Senhor, pelo Espírito. Assim, a energia do Adversário é muito mais potente que qualquer força do katechon e só aceitará rendição à parousia do Kyrios, o Senhor Jesus Cristo.

Mas primeiro, é essencial entender apropriadamente a originalidade característica do Filho da Perdição, pois ela participa integralmente na novitas do Logos encarnado e a Era que inaugura. O Enganador do mundo se apresenta como Filho de Deus (Didaquê, 16:4), e sua energia é expressa na sedução da fé em Jesus Cristo: sua apostasia não é uma vaga separação ou discessio de Deus e nada tem a ver com qualquer forma de ateísmo; ela tem um único alvo – erradicar a fé em Jesus como o Cristo. O Filho da Perdição é o Anticristo, e como tal só pode ser concebido na Era Cristão. Não é possível opor Cristo, ser o Antikeimenos, através do poder de antigos ídolos. Para opor-se a um Filho, deve haver um Filho: para opor a apoleia (destruição), deve haver soteria (salvação). O que quer [2] que se oponha a esse duelo apocalíptico será esmagado e tudo o que for indiferente será cuspido. Tudo fica à mercê do poder do Antikeimeno cuja própria impotência perante o Senhor será revelada apenas no fim.

Assim, não há dúvida que o katechon será arrasado, mas será arrasado pelo Uno Ídolo [3] que é anti-idólatra em respeito a toda antiga forma de idolatria porque realmente as experimenta como obstáculo efetivo? Ou será pelas orações daqueles que com fé inabalável anseiam pelo sopro Divino (pneuma)? No primeiro caso poderíamos pensar num consenso entre aqueles em expectativa religiosa e o katechon; no segundo caso, em uma perspectiva compartilhada pelos Cristãos e o Antikeimenos de que ambos anseiam pela eliminação do poder vigente. O veredito sobre a natureza do katechon mudará radicalmente conforme a resposta que provoque.

Está claro que o poder do katechon está inscrito a priori no abismo da vontade divina. O mesmo pode ser dito sobre a força de Satã enviada por Deus para condenar aqueles que não aceitam o amor pela Verdade (agape tes aletheias). Nem o katechon ou o Adversário tem poder efetivo para atrasar ou acelerar a parousia. O Fim dos Dias chegará como um ladino noturno e nem o Filho sabe a hora (Mat. 24:36, 43; 1 Tess. 5:2, Apoc. 16:15). Está escrito que antes do dia, a revelação total da apostasia deverá ser completa. O drama é real precisamente por esta razão. O breve período, o tempo do pré-julgamento que se estende diante de nós ainda não adquiriu a forma final. É um estágio de proto-agonistas e não de marionetes. Estes seguem em suas ‘missões’ sem a capacidade de saber onde elas terminarão. O que é claro e inalterável é o mero significado dessas ‘missões’. A História é sua manifestação e confirmação – mas é ainda sim história, agonia autêntica, conflito entre vontades de poder de sujeitos reais. E assim até a força do katechon é uma subjetividade de contenção-retenção tão vital quanto do Antikeimenos, que só existe na vida daqueles que agem como anticristos de acordo com as palavras da Primeira Carta de João, 2:18-23, cuja força dramática excede em muito aquela do Antikeimenos paulino (e ainda mais notavelmente da força daquele descrito na Primeira Carta aos Coríntios 16:9, onde o termo é reservado para os que se opõe ao Apóstolo dos Gentios). O Anticristmo forma uma comunidade numa imagem invertida à da ekklesia. Possui um corpo composto daqueles que, caindo diante da tentação, agem como anticristos. Na hora derradeira a energia dessa comunidade se torna insustentável. Como prova de seu total pertencimento à Era, é constituído de muitos que ‘vieram de nós’ (1 João, 19), mesmo que em sua natureza não fossem ‘como nós’. Essas palavras só podem ser entendidas de uma forma: o Anticristo mostra todo o seu poder na divisão (diabolos) da Igreja, arrancando de seu meio todos aqueles que não pertencem a ela in gratia. Em seu tratado sobre a Epístola de João, Agostinho foi além e argumentou forçosamente que muitos anticristos revelaram a si mesmos e deixaram nossa Igreja, mas existem muitos daqueles que permanecem (multis intus sunt, no exierunt, sed tarnenantichristi sunf), e todos devem se perguntar se também não estão entre eles.

Não podem estes ser numerados entre as hierarquias dos poderes do katechon? O katechon, de fato, deve ser entendido como plural como o fizemos até agora, mas não em pluralidade meramente civil e política. Os anticristos que permanecem na Igreja exercem imparcialmente a função de conter e restringir; eles atrasam o dia em que as forças do Anticristo estarão totalmente preenchidas e a última batalha se iniciará. Por que, de fato, não tomariam estes uma saída, se não desejam deferir a pleroma do poder iníquo? Será possível a existência de uma dimensão katechôntica dentro do crescente corpo do Anticristo ainda ancorado na Igreja? Será a contradição no coração da ekklesia também um conflito interno nas forças do Anticristo? Lidas sob a luz da figura do katechon, essas dramáticas passagens de Agostinho adquirem ainda maior significância.

Quanto mais examinamos o protagonista do conflito escatológico, mais complexo e problemático ele parece ser. Já vimos o quão difícil é assimilá-lo ao império. Se a quarta besta de Daniel é interpretada como uma imagem dos Romanos, então está claro que nada no poder de Roma poderia reter o momentum do Adversário, conforme insistentemente argumentou Hipólito. [4] Se de fato Roma exalta sua força de lei e direito – conquanto injusta quando aplicada sobre Cristãos – num esforço de reduzi-la ao katechon (o que parece muito com a posição Tertuliana, mesmo sob sua guisa anti-Marcionita) então seu poder não pode ser definido como verdadeiramente imperial. A visão de Rom. 13 parece estar relacionada ao problema geral da necessidade de uma autoridade eminentemente burocrática e administrativa com a qual os Cristãos não pudessem nem devessem viver em paz (como com o inimigo!). Que isso fosse possível, sob a base de Romanos (ou qualquer outro texto cristão primitivo até o quarto século, na minha visão), pensar em termos da santidade de uma autoridade política, tornou-se o monstruum da teologia da Restauração. [5] Para os pais da Igreja, diakonia e servitium (cuidado e serviço) são essencialmente consideradas dentro do horizonte de uma codificação do Político e a neutralização de sua auctoritas. No fim, o imperador é reduzido à figura daquele que reina, um mero rex, a cservus servorum Dei. [6]

Notas

[1] Ti(j.r| {tempo): honra, honraria por razão de grau ou ofício, honraria recebida ou percebida; reverência; preço, valor. Tempo pode referir-se aqui à cultura de honrarias pagas a heróis e deuses nos cultos. Grosso modo, é outra palavra para ritual; Quando fé está ausente, devoção não é mais reverência mas mero ritual, isto é, tempo.

[2] Antikeimenos (o Adversário), do verbo antikeimai (confrontar, opor), quer literalmente dizer ‘aquele que se opõe, que é contrário (anti)’.

[3] ‘Idolo Uno’. Referência à LEÃO, Irineu de. Contra as Heresias, livro V, 25,1, que fala do Antikeimenos como aquele que se esforça para ser o Ídolo Uno após derrubar todos os outros ídolos e instituir-se como Deus no lugar do verdadeiro Deus.

[4] Sobre o tema katechôntico em Irineu e Hipólito, ler M. Rizzi (2009).

[5] O máximo meridiano que esta ideia de poder pode alcançar logicamente pode ser encontrado na Carta ao Cardial Fornari sobre os Erros de nosso Tempo, de Juan Donoso Cortés, assim como em O Papa, de Joseph de Maistre (1819).

[6] Servo dos servos de Deus, um dos títulos papais.

Fonte: Katehon
Tradutor: Augusto Fleck

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