A Doutrina Macron

Escrito por Andrea Muratore
Na contramão de seus predecessores Sarkozy e Hollande, que abriram mão de qualquer autonomia estratégica em prol do servilismo atlantista, Emmanuel Macron voltou a projetar uma estratégia de poder francesa, na pretensão de construir um pólo autônomo europeu entre os EUA e a China. Não obstante, resta saber se isso não servirá, simplesmente, para benefício globalista a longo prazo.

Como é sabido, o senso francês de Estado e a busca constante da França por uma projeção econômica, diplomática, militar e geopolítica nos cenários de referência da República, levaram a França, durante as décadas da Quinta República, a construir a mais autônoma das estratégias políticas no contexto europeu. Uma estratégia muitas vezes inescrupulosa (como testemunham sobretudo as intervenções em solo africano[1]), garantida pelo seguro de vida da force de frappe, o arsenal nuclear nacional, e que teve no “pai” da Quinta República, o General Charles de Gaulle, seu principal inspirador[2].

Após anos de ofuscação durante os governos de Nicolas Sarkozy e François Hollande, o presidente francês Emmanuel Macron pensou em reconectar-se com a tradição do “monarca republicano”, com a qual o chefe de Estado é identificado desde De Gaulle, e em iniciar uma atualização gradual da tradicional doutrina geopolítica e geoeconômica do país negligenciada por seus antecessores. Por Sarkozy em primeiro lugar, porque ele fez disso um pré-requisito, a autonomia dos comandos militares franceses em relação às estruturas da OTAN, na qual Paris retornou em 2009[3] mostrando muito plasticamente a falta de escrúpulos da projeção nacional transalpina com a problemática aventura de guerra na Líbia. Por Hollande, mais tarde, pela descarada dessacralização do papel presidencial, pela torção economicista do presidente que não soube construir um desenho político complementar ao alemão de Angela Merkel na Europa, pela crise sistêmica dos aparatos que em sua época começou a surgir.

É por isso que podemos falar de uma “doutrina Macron”, ou seja, uma contribuição dada por Macron à redescoberta em uma chave moderna das diretrizes da política de poder da França republicana; de uma abordagem sistêmica da França à competição internacional; da identificação pelo decisor político de macro-zonas precisas definidas como cruciais para a elaboração da estratégia nacional francesa.

Há uma profunda contradição no homem e no presidente Macron. Há anos-luz da ignorância política crua de um Sarkozy ou da apática falta de visão de um Hollande, o mais jovem presidente da Quinta República tem sido, no entanto, um personagem híbrido por muito tempo. Tendo alternado, em sua terra natal, reformas “liberais[4]” no tema do trabalho[5] e aposentadoria, políticas verdes ingênuas que acenderam a raiva da população que temia ver o fardo da transição ecológica descarregado sobre si mesma[6] e, finalmente, desajeitadas políticas de contraste ao islamismo político com um vago sentimento ocidentalista e neoconservador[7], Macron na frente interna tentou ser transversal, para escapar de categorizações de qualquer tipo, com o resultado de antagonizar uma grande fatia da opinião pública. Esta transformação choca com uma visão das relações internacionais que sempre foi, por comparação, mais coerente e estratégica.

O verdadeiro e próprio “manifesto” desta visão foi a recente entrevista do presidente com a revista francesa de geopolítica Le Grand Continent, dedicada à chamada “doutrina Macron”[8]. Macron abordou uma ampla gama de questões, do futuro da União Européia à OTAN, da relação entre a França e a África à mudança climática, de modo que a partir das palavras da extensa entrevista pode-se compreender em sua complexidade a contribuição política feita pelo atual presidente para a estratégia do Hexágono.

Macron tem uma idéia clara de que nas próximas décadas a Europa terá que construir espaços de autonomia estratégica no contexto da “Nova Guerra Fria” entre a China e os Estados Unidos e que o controle francês desses processos é do interesse nacional de Paris. “Se eu tentar olhar além do curto prazo”, disse ele, “eu diria que devemos ter dois eixos fortes: encontrar formas de cooperação internacional úteis que evitem a guerra, mas nos permitam responder aos desafios contemporâneos; construir uma Europa muito mais forte que possa afirmar sua voz, sua força, mantendo seus princípios, em um cenário assim refundado”[9].

Relativamente a esta estrela polar todas as estratégias aprofundadas desenvolvidas por Paris são elencadas. Se extremamente complexo parece ser o jogo da defesa comum européia, oposta tanto pela ascensão dos países filoatlantistas do Leste quanto pela posição de Washington no Velho Continente, e longe da “morte cerebral” definitiva da OTAN de que Macron falou em 2019, em Le Grand Continent Macron mencionou explicitamente a soberania européia no contexto das novas tecnologias: “Estamos avançando no campo da autonomia tecnológica e estratégica, enquanto todos ficaram surpresos quando comecei a falar de soberania sobre o 5G. Portanto, antes de mais nada, há um trabalho ideológico a ser feito, e é urgente. É uma questão de pensar em termos de soberania européia e autonomia estratégica, para que possamos existir por conta própria e não nos tornarmos o vassalo desta ou daquela potência sem ter mais voz”[10].

Estamos falando de um discurso crucial. A pandemia acelerou o caminho comum de Emmanuel Macron e Angela Merkel para a definição de estratégias de longo prazo para a construção dos pilares de um primeiro projeto de soberania tecnológica e digital européia, concebido tanto como uma alternativa à penetração chinesa quanto como um contrapeso ao poder de influência dominante dos gigantes digitais. A França e a Alemanha promoveram no último ano a ascensão e o lançamento do Gaia-X, o projeto de uma plataforma de computação em nuvem européia, que no futuro imediato não será completamente independente do Google, da Amazon, da Microsoft[11] e de outros oligopolistas do mercado de dados dos EUA, com uma renda acumulada ao longo de décadas, mas lançou a vontade européia de participar da definição da corrida em direção às novas fronteiras tecnológicas globais.

Gaia-X, descrito pelos governos francês e alemão como um “facilitador de plataforma” totalmente armado com tecnologias européias, tem como objetivo assegurar o estabelecimento de uma potência computacional crescente e o desenvolvimento por operadores no Velho Continente de infraestruturas digitais e físicas para garantir a gestão, proteção, armazenamento e exploração econômica dos dados.

Observamos que, como aconteceu no passado com a questão da defesa e aeroespacial, a França pretende explorar o jogo tecnológico europeu como um multiplicador do poder político e como uma força motriz para o desenvolvimento de sua indústria e de seu potencial de produção.

Esta lógica também se aplica aos planos de transição ecológica, contidos no plano France Relance de 100 bilhões de euros, com o qual o governo parisiense pretende aprofundar suas estratégias de recuperação a longo prazo após a pandemia. O presidente fez o mea culpa por ter seguido durante muito tempo o “indecente” ambientalismo dos impostos sobre o diesel e medidas destinadas a atingir, antes de tudo, a classe média, medidas que alienaram as simpatias de parte da população pelo tema da transição. “Devemos mostrar que todos são atores, e devemos fazê-lo dando a todos um papel, ou seja, desenvolvendo massivamente novos setores de atividade econômica, que permitam a criação de novos empregos mais rapidamente do que os antigos são destruídos”, enfatizou o Presidente.

Esta abordagem é sistematicamente estudada na “France Relance”, como lembra a Rivista Energia. Dos 100 bilhões, o plano “dedica 34 bilhões a medidas relacionadas à competitividade da economia – além de 30 bilhões para medidas especificamente voltadas à transição energética, e que incluem fortes dimensões inovadoras, como a descarbonização da indústria ou o desenvolvimento de tecnologias verdes”[12], colocando as tecnologias mais sustentáveis a serviço das indústrias estratégicas: energia (com o hidrogênio como nova fronteira), aeronáutica, transporte ferroviário, energia nuclear. Quatro setores nos quais Paris pretende desempenhar um papel importante na Europa e criar padrões a nível comunitário.

O tema da autonomia estratégica é associado a uma rejeição substancial da narrativa dominante imposta pelos Estados Unidos nas relações internacionais e nas relações transatlânticas. Nesta entrevista, Macron tenta chegar o mais próximo possível de seu augusto predecessor, o antiamericano Charles de Gaulle: “Nossa política de vizinhança com a África, com o Oriente Próximo e Médio, com a Rússia, não é uma política de vizinhança para os Estados Unidos da América. Portanto, é insustentável que nossa política internacional dependa deles ou siga suas pegadas”.

Isto é combinado com uma referência ao exorbitante privilégio econômico do dólar e as vantagens estratégicas associadas para Washington. A penalização das indústrias francesas e européias devido às sanções dos EUA contra a Rússia e o Irã é posta em questão por Macron, que parece estar prestando homenagem ao tema da investigação “europeísta” do equilíbrio global, anunciando uma futura mudança de paradigma.

Será nos próximos anos que se decidirá se as de Emmanuel Macron e sua aliada Angela Merkel são meras explosões retóricas ou as primeiras sementes de um projeto político de autonomia européia. Das novas tecnologias à energia, da sustentabilidade às finanças, existem planos europeus para avançar em direção a um maior grau de autonomia, e na doutrina nacional francesa eles encontram expressão concreta. Mas como Pierluigi Fagan[13] lembrou ao analisar a “geopolítica de Macron”, no mundo de hoje “a soberania não é nada sem poder”. Se Paris for capaz de trazer seu potencial militar e industrial para apoiar projetos concretos de defesa europeus capazes de envolver atores como a Itália em uma base mais igualitária e de olhar o Mediterrâneo como uma área estratégica européia, e não atlântica, a autonomia pode se tornar soberania. Caso contrário, falaremos sobre a doutrina Macron, mas o faremos dentro de um quadro mais funcional aos desejos emanados do outro lado do Atlântico.

Notas

[1] Le guerre segrete di Parigi in Africa e le conseguenze problematiche per il continente sono citate in Emanuel Pietrobon, L’arte della guerra segreta, Pubblicazione indipendente, Torino 2020.
[2] Williams Charles, De Gaulle – L’ultimo grande di Francia, Il Giornale – Biblioteca storica, Milano 1995.
[3] Francia; Parigi rientra nella Nato, 43 anni dopo De Gaulle, L’Eco di Bergamo, 11 marzo 2009.
[4] La riforma del mercato del lavoro di Macron, Atlante Treccani, 18 settembre 2017.
[5] Nicholas Vinocur, Macron’s big labour reform, Politico Europe, 31 agosto 2017.
[6] La lezione dei gilet gialli: l’ambientalismo non è un pranzo di gala, Coniare Rivolta, 23 febbraio 2019.
[7] Andrea Muratore, Tutti i fronti aperti tra la Francia di Macron e la Turchia di Erdogan, Inside Over, 30 ottobre 2020.
[8] Giovanni Collot, Amélie Depriester, Alice Fill, La dottrina Macron, 16 novembre 2020.
[9] Ibid.
[10] Ibid.
[11] Andrea Muratore, Big tech e sovranità digitale europea, Inside Over, 20 settembre 2020.
[12] Clemence Pelegrin, Renato Rallo, France Relance e transizione ecologica, Rivista Energia, 16 novembre 2020.
[13] Pierluigi Fagan, Geopolitica di Macron, Osservatorio Globalizzazione, 29 agosto 2019.

Fonte: Eurasia Rivista

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