“O Passo da Floresta” de Ernst Junger e a Mente Conservadora

Escrito sob a sombra da Segunda Guerra Mundial, “O Passo da Floresta” de Ernst Junger reimagina a floresta como símbolo da liberdade numa era em que o “Leviatã”, ou estado totalitário, ameaça invadir espaços abertos e livres. Ainda assim, enquanto o “rebelde da floresta” tiver acesso aos domínios da arte, filosofia e teologia, o Leviatã não pode triunfar completamente.

por Matthew Pheneger

A floresta é um símbolo recorrente da literatura ocidental. Lar de bruxas, trolls monstruosos, cavaleiros penitentes e eremitas escondidos, a floresta é um perigoso, mas encantador, repositório de segredos e poderes obscuros com a capacidade para restaurara e regenerar.

Na imaginação antiga, a floresta e locais selvagens eram a morada de todos os tipos de deuses menores e espíritos: Pan, as ninfas, centauros, sátiros e semelhantes. Encontrar estes moradores do reino silvano sempre foi algo arriscado, pois o viajante mortal raramente poderia vislumbrar aquele mundo encantador de seres sobrenaturais sem passar por uma transformação de alguma forma ou outra.

Combinando o poder transformador com a imagem de Cristo na natureza, a imaginação medieval concebeu a floresta como local de penitência onde é possível encontrar consolo, renascimento e rejuvenescimento espiritual. Yvain, “cavaleiro do leão” Arturiano vem a mente, ou Dante perdido numa “selva escura”, que deve ser atravessada antes da sua jornada entre o Inferno e o Céu ser iniciada.

Na Renascença e período moderno inicial, a floresta se tornou a antítese da civilização, tanto num sentido positivo quanto negativo. Aqui lembramos da floresta edênica Shakespeariana de Arden, que na peça serve aos propósitos da perigosa e corrupta corte do Duque Ferdinando. Aqui também a floresta é o ambiente onde os personagens principais passarão por suas respectivas transformações.

Na filosofia política desse período, a concepção Shakespeariana de Arden encontra um paralelo com o pensamento de Jean Jacques Rousseau, que defendia uma pintura idealista do indivíduo no chamado estado de natureza. Em oposição a isso está Thomas Hobbes, para quem o estado, com leis e soberanos, era a única coisa entre o homem e uma vida “bruta, nojenta e curta”.

A longa história de interpretação e reinterpretação levanta a questão: qual é a contínua relevância da floresta para a imaginação Ocidental de hoje? A extensão da desmitologização Ocidental desde o iluminismo tem sido um ponto consternante para o pensamento conservador – será grande surpresa encontrarmos que o desencanto que permeia nossas comunidades e instituições coincidiu com a perda da reciprocidade entre o homem e a natureza? O significado da floresta ainda é acessível para nós?

Em seu trabalho de 1951, O Passo da Floresta (do original der Waldgang), o celebrado escritor alemão Ernst Jünger aborda este tema. Escrito sob a sombra da Segunda Guerra Mundial numa Alemanha castigada pela destruição da era nazista e dividida entre um ocidente liberal e oriente comunista, o Passo da Floresta reimagina a floresta como símbolo de liberdade, numa era em que o “Leviatã”, ou estado totalitário, ameaça invadir espaços abertos e livres.

Lido diretamente, o tratado de Jünger é um guia prático para o chamado “rebelde florestal” – uma espécie de sectário que rejeita a distribuição desenfreada de energia bruta contra o indivíduo, na procura de revidar contra a tirania. Num sentido metafórico, Passo da Floresta é uma meditação interpretativa sobre a necessidade de manter a integridade da condição interior do ser em um mundo destinado a destruí-la. Convidando o leitor para além das “trilhas abertas” e “limites de suas considerações”, Jünger expõe sua tese:

No passo da floresta consideramos a liberdade do indivíduo no mundo. Devemos levar em conta a dificuldade – de fato o mérito – de ser um indivíduo neste mundo.

Ainda sim, ser um indivíduo sob a sombra do Leviatã não é fácil. “Admitidamente”, Jünger escreve, “afirmar a própria liberdade hoje se tornou especialmente difícil. A resistência exige grandes sacrifícios, o que explica por que a maioria prefere aceitar a coerção”.

Como Jünger percebe, elevar uma voz distinta na face do “plebiscito de massas” pode muito bem levar a destruição dessa voz, pois o nosso mundo é um onde nenhuma brincadeira fica impune ou sem castigo. Permanecer em silêncio é igualmente perigoso, pois o silêncio também é uma espécie de resposta:

Eles nos perguntam porque permanecemos em silêncio naquele espaço e tempo, e nos apresentam a conta por nossa resposta. Estes são os dilemas do nosso tempo, dos quais ninguém pode escapar.

As reflexões de Jünger sobre este ponto lembram a experiência contemporânea das mídias sociais e do “cultura de cancelamento”, onde qualquer um que ouse questionar qualquer que seja o consenso atual corre o risco de ser “cancelado”, ou sujeito a inúmeros abusos e acusações sem fundamento, dignas de pouco além de uma ação judicial por difamação. Assim também a recusa em participar do ultraje cacofônico e manifestações populares de “solidariedade” que dominam nosso espaço civil. A não-participação rapidamente gera uma suspeita ideológica, pois “a não-participação é uma das atitudes que perturbam o Leviatã”. De fato, em tal mundo de consenso imposto e distorções orwellianas da verdade, Jünger afirma que “é somente através da reflexão que ganhamos nova segurança”.

A viagem pelo passo da floresta é, portanto, não apenas um ato físico de resistência em que se pode participar, como a resolução de votar conscientemente numa eleição manipulada, mas também a redescoberta de um estado interior. Assim como se pode recuar para a floresta num sentido literal quando confrontado com opressões em larga escala (como fizeram os Baltic Forest Brothers durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo), assim também o indivíduo pode se refugiar nos recessos de seu ser mais íntimo, onde se pode esperar pela alimentação de alguma semelhança entre pensamento soberano e verdadeira personalidade. Como o Hamlet de Shakespeare, que encontra consolo da tirania no solilóquio, assim também o rebelde da floresta é aquele que entende a luta pela liberdade exterior dependente primeiro da luta pela liberdade interior na mente e no espírito.

Embora tomar a passagem florestal seja visto como um retiro, não devemos nos equivocar: Desbravar o passo da floresta é fundamentalmente heróico. Ele requer o treinamento de uma forte vontade em uma época de grandes transigências, um compromisso com os próprios princípios em um mundo obcecado com a erradicação de toda diferença verdadeira – política, filosófica ou não. Embora Jünger seja franco em admitir que aquele que opta por tomar a passagem florestal pode não conseguir desfazer o Leviatã no final (no final, os Forest Brothers não derrubaram a União Soviética), isto importa menos do que o fato de que o ato em si vai “mudar a pessoa que decidiu ir em frente”, pois a passagem florestal é um caminho totalmente iniciático. Ele chama aqueles que estão prontos para se tornarem impróprios em um mundo desumano cada vez mais definido pelo medo e pela coerção; para aqueles que podem reunir a força de vontade necessária para ser o um em cem que diz “não” e assim segue sua consciência – mesmo que isso sele seu destino. Aqui está um espaço além do que é condicionado pelo tempo; além da exaurida dicotomia de “esquerda e direita”, ou “liberal e conservador”, a passagem florestal não conhece uma ideologia abrangente. Ela oferece apenas a pureza sublime do pensamento e ação livres:

Não pode haver dúvida que o mundo mudou e continua a mudar, e por necessidade; não obstante, a liberdades também muda, não em essência, mas forma. O passo da floresta estabelece o movimento interno dessa ordem que o diferen-cia das formações zoológicas.

“Aqui e agora”. Eis o lema do rebelde da floresta.

Mas como alguém encontra seu caminho através da passagem florestal, obscura como é pela folhagem densa, espinhos e trilhas cobertas? Jünger sugere que as humanidades – arte, teologia e filosofia – permanecem como guias essenciais para nos mostrar o caminho das profundezas.

Um gambito deste tipo só pode ambicionar um sucesso se os três grandes poderes da arte, filosofia e teologia venham auxiliá-lo e abram caminho neste beco sem saída.

Ao entrarmos em contato com os vastos repositórios do pensamento humano, cultivamos uma “consciência avaliativa” que afia nossa habilidade julgamento e contemplação – uma habilidade essencial num tempo marcado pela propaganda pervasiva e crises onde “nem lei ou costume permanecerão de pé”. De fato, é com esse brilho sobre o poder inerente do trabalho criativo que podemos tirar algum sentido da mania iconoclasta que caracteriza vários movimentos ideológicos, tanto presente quanto históricos. Quer falemos de queimadas em massa de livros ou da necessidade compulsiva de “desconstruir” a arte e a literatura, o ódio à cultura volta à cabeça sempre que o Leviatã se aproxima. Se o acesso do homem a esses modos superiores de atividade for cortado, ele pode ser rapidamente tornado dócil e manipulável.

Antitético ao poder salvador das humanidades é o poder de absorção da tecnologia, que facilita o alcance titânico do Leviatã ao abolir a lei e corromper a ideia do Estado. A escrita de Jünger ressoa com referências ao crescente “automatismo” de nosso tempo e ao extenso aparato tecnológico que “envolve” o homem e fomenta sua destruição – tanto fisicamente, nos modernos campos de batalha onde ninguém é poupado à designação de combatente, quanto espiritualmente, através da ossificação dos poderes internos do homem pelas inúmeras teorias técnicas que “lutam por uma explicação lógica e perfeita do mundo”. Também o homem então deverá enfrentar a metrópole tecnológica moderna, onde meios invasivos de vigilância acompanham cada movimento seu, e fileiras sem fim de arranha-céus se esticam aos céus – dominando os céus como torres de Babel produzidas em massa. Em uma passagem particularmente impactante, Jünger evoca o notório exemplo do Titanic para ilustrar a natureza dual do progresso tecnológico.

Aqui luz e sombra colidem fortemente: a arrogância do progres-so com o pânico, o maior conforto com a destruição e o automatismo com uma catás-trofe manifesta como acidente de trânsito.

Não obstante, mesmo assistido pela tecnologia, o Leviatã jamais pode triunfar permanentemente no embate pela alma humana, pelo menos não enquanto ele tiver acesso às correntes que deram origem aos antigos domínios da arte, filosofia e teologia; pois estes estão enraizados na imaginação, que traz dentro de si o germe da “nova liberdade” que nossa era exige:

A resistência contra esta força exige uma nova concepção de li-berdade, que nada pode ter a ver com as idéias desbotadas associadas a este mundo de hoje.

A liberdade que Jünger concebe não é mero lugar-comum ou slogan de campanha, mas um redescobrimento e reconstrução do indivíduo nele mesmo, através da renovação de seus poderes imaginativos. Essa é uma liberdade nascida no coração, na medula e na alma. Nenhum governo ou partido político pode verdadeiramente esmagá-la, ainda que tentem. É uma força que surge do interior, em vez de um direito positivo outorgada pelo exterior. Nesse sentido, a passagem florestal é aberta a todos, e até mesmo ‘democrática’, embora permaneça um caminho do indivíduo. Aqui não existem conceitos abstratos ou formulados por uma ‘humanidade’ anônima e sentimental:

Ao falar do indivíduo aqui, nos referimos ao ser humano, mas sem os excessos que se acumularam à palavra ao longo dos últimos dois séculos. Refe-rimo-nos ao ser humano livre, como Deus o criou. Esta pessoa não é uma exceção, ele não representa nenhuma elite. Muito mais, ele está oculto em cada um de nós, e as di-ferenças só surgem a partir dos diferentes graus que os indivíduos são capazes de efe-tivar a liberdade que lhes foi conferida. Nisso ele precisa de ajuda – a ajuda de pen-sadores, conhecedores, amigos, amantes.

Jünger toca continuamente nestas homenagens ao que permanece orgânico em nós – à necessidade de “pensadores, conhecedores, amigos e amantes”. Pois a história sugere que, nos tempos e lugares onde o Leviatã se aproxima, o que nos manterá numa rota de fuga aberta será invariavelmente a nossa humanidade compartilhada e o reconhecimento mútuo do essencial um no outro.

Em tais condições, deve ser considerado um grande mérito se o conhecimento do caminho virtuoso não for totalmente perdido. Qualquer um que tenha escapado das garras da catástrofe sabe que basicamente teve a ajuda de pessoas sim-ples para agradecer, pessoas que não foram vencidas pelo ódio, pelo terror, pelas mecanizações dos lugares-comuns. Estas pessoas resistiram à propaganda e às suas insinuações claramente demoníacas.

Nesse sentido, podemos simplesmente acrescentar que Teseu jamais encontraria o coração do labirinto sem o fio dourado de Ariadne.

Estreitamente relacionado à capacidade imaginativa está o poder duradouro do mito, ao qual fiz referência no início deste ensaio e que para Jünger está próximo das “origens”. Em vez de um tema morto relegado à névoa da pré-história, Jünger fala do mito em termos de uma “realidade atemporal”, sempre presente nas flutuações da história e nos contornos da consciência humana. Na possibilidade do indivíduo apenas “acordar” para o poder do mito em sua própria experiência, ele exploraria a potencialidade inerente que flui através dele como veias inexploradas de ouro.

Podemos também dizer que o homem dorme na floresta – e no momento em que ele desperta para reconhecer seu próprio poder, a ordem é restaura-da. O ritmo superior presente na história como um todo pode até ser reinterpretado como a redescoberta de si mesmo pelo homem. Em todas as épocas haverá poderes que procuram forçar uma máscara sobre ele, poderes totêmicos, mágicos ou técnicos. A rigidez então aumenta, e com ela o medo. As artes petrificam, o dogma torna-se abso-luto. No entanto, desde tempos imemoriais, também se repete o espetáculo do homem retirando a máscara, e a felicidade que se segue é um reflexo da luz da liberdade.

Como a citação acima indica, o Leviatã também é recorrente, a força mítica na história humana. Em todos os tempos e lugares, é a manifestação pervasiva do medo que o indivíduo deve superar. Ao fazê-lo, a liberdade imortal é recriada. Isso o é independentemente de falarmos sobre Sócrates ou Cristo, Rei Davi ou Joana d’Arc. Todos estes entre outros abriram os caminhos para o rebelde da floresta.

Os argumentos podem mudar, mas a ignorância cortejará eter-namente. O homem é acusado por desprezar os deuses, depois por não se curvar a um dogma, e mais tarde novamente por ter repudiado uma teoria. Não existe nenhuma grande palavra e nenhum pensamento nobre pelo qual o sangue não tenha corrido.

Isso é o conteúdo de lendas e fábulas; conteúdo que transmite um senso poético à vida que nenhum estudo científico pode verificar em termos de dados brutos. Aqui estão os elementos especulativos, ouso dizer até irracionais, de onde toda a imaginação saudável atrai seu sucesso. O passo da floresta contém em si a fonte primordial de inspiração – a fonte mística dos contos de fada onde encontramos a medida de nossa profundidade. Esta fonte corre profundamente; evoca o poder da memória, tradição e tudo o que é supratemporal. Aquele que obtiver acesso a estes “baús de tesouro do ser”, mesmo por um fugaz momento, “ganhará nova segurança – as coisas do tempo não só perderão seu aspecto ameaçador, mas parecerão novas e significativas”.

Importante como é a camada interior, Jünger mantém que não se pode ficar simplesmente nela. Não é bom que o rebelde da floresta se torne um ermitão. Assim, encontramos a questão da experiência exterior – como alguém se comporta “em face e no interior da catástrofe”. A respeito disso, Jünger é frustrantemente evasivo. Embora ele aluda a atos que o prospecto rebelde da floresta possa realizar, como adotar um desprendimento ascético das posses materiais, manter uma forte constituição física, e cimentar laços com pessoas de pensamento similar, ele oferece pouco no sentido de atividades concretas e focadas no exterior. Enfim, podemos ter a impressão de que isso é intencional. Afinal, o mentor pode acompanhar o protagonista até um certo ponto. Não podemos ser escoltados pela passagem florestal. Antes, cada um deve encontrar maneiras criativas para realinhar seu interior com a existência exterior no mundo. Para muitos de disposição conservadora, isso pode tomar a forma de redescobrimento das tradições autênticas e consagração da vida a elas. Outros podem encontrar diferentes caminhos. Embora Jünger não ilustre precisamente como um deverá fazer isso, podemos certamente deduzir como não fazê-lo. O texto é claro sobre a necessidade de ação mundana ser qualquer coisa menos um chamado para violência niilista e destruição. Embora não possamos negar que o rebelde da floresta é um arquétipo “rebelde”, o passo da floresta não é para aqueles que apenas buscam uma desculpa para derrubar e desmantelar. Por mais que alguém sinta-se tentado a equiparar o desordeiro ou saqueador contemporâneo com a mensagem antitotalitária de Jünger, ele estaria enganado.

Nesse sentido, um perigo especial repousa na infiltração de ele-mentos criminosos. O rebelde da floresta pode não lutar conforme a lei marcial, mas tampouco luta como um bandido.

É revelador que Jünger distingua aqui o rebelde florestal da infame turba parisiense, pois esse corpo foi muitas vezes incitado e manipulado por elementos perniciosos e radicais, e em estimativa final apenas abriu caminho para um totalitarismo mais profundo e extenso do que qualquer monarquia que o precedeu. De fato, não é um exagero afirmar que a máfia criminosa possa de fato servir aos interesses do Leviatã, pois ela gera o tipo de alarmismo e medo que incentiva as pessoas soberanas a trocarem sua liberdade por uma falsa sensação de segurança.

Em estimativa final, um bom conservador pode muito bem levantar uma sobrancelha na tentativa de conciliar noções de rebeldia e “fuga para a floresta” com o princípio conservador, mas a ênfase de Jünger no que é essencial em nós, sua elevação da razão prática sobre a ideologia teórica, e sua crença em uma moralidade natural e evidente que é trançada no tecido da experiência humana, reflete uma clara afinidade conservadora. Embora o próprio Jünger tenha feito sua passagem há muito tempo, sua vida, assim como seu corpo substancial de trabalho, permanecem como uma prova do poder do conservadorismo imaginativo. De fato, como indivíduos envolvidos no projeto contínuo de reimaginar o que é o conservadorismo e o que ele pode ser em uma era hostil a ele, aquela “terra inexplorada e ainda habitada” – o passo da floresta – permanece aberta a nós. Nós também somos rebeldes da floresta.

Fonte: The Imaginative Conservative

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