A grande traição: Jean-Claude Michéa “com a Esquerda contra a Esquerda”

Jean Claude Michéa (nascido em 1950) é um filósofo francês e ativista de esquerda que tem escrito extensivamente sobre a situação da Esquerda europeia desde os anos 1970. Inspirando-se em George Orwell e outros como Rosa Luxemburgo, ele é amplamente conhecido na Europa por ter posicionamentos fortes não somente contra o capitalismo, o individualismo e o neoliberalismo, mas também, e de modo mais controverso, pela sua denúncia das correntes e partidos “oficiais” da Esquerda e sua intelectualidade insípida. Estes, diz ele, perderam suas convicções anticapitalistas e inevitavelmente se distanciaram das massas de um modo geral e da classe trabalhadora de um modo particular, culminando no crescimento da extrema direita.
Em um livro recente, Les mystères de la gauche: de l’idéal des Lumières au triomphe du capitalismo absolu (Paris: Climats, 2013) [Os Mistérios da Esquerda: Dos Ideais Esclarecedores ao Triunfo do Capitalismo Absoluto], Michéa continua sua crítica contra a Esquerda que, afirma ele, tem aceitado o capitalismo e seus valores liberais associados e tem, portanto, se tornado idêntica à Direita. Além disso a Esquerda tenta esconder a própria traição através do enfoque em questões sociais (direitos civis) ao invés de lutas sociais (anticapitalistas) que têm mais significado para a grande massa da classe trabalhadora. Será que a Esquerda forma a última etapa do capitalismo? Assim o slogan que resume a posição de Michéa é: “pense com a Esquerda, contra a Esquerda.”
O texto abaixo foi extraído de uma entrevista com Michéa publicada pelo jornal italiano La Repubblica em 19 de dezembro de 2015 [http://www.repubblica.it/cultura/2015/12/19/news/jean-claude_miche_a_la_sinistra_deve_rifondare_l_alleanza_illuminista_-129800190/?refresh_ce]; uma transcrição mais extensa da entrevista está disponível em francês [http://www.leblancetlenoir.com/2015/12/nous-entrons-dans-la-periode-des-catastrophes.html]. Os trechos dos textos em italiano e em francês foram traduzidos por mim.

<<Repubblica: As performances recentes da Frente Nacional nas eleições regionais surpreenderam você?

Jean-Claude Michéa: Na verdade, não tem nada mais lógico do que o aumento do voto popular para a Frente Nacional. Isto não é apenas porque a Esquerda oficial apoia firmemente a economia de mercado (com a facção esquerdista, por sua parte, apenas questionando “excessos” neoliberais); mas, como Pasolini já apontou, eles parecem ter orgulho em celebrar entusiasmados todas as consequências morais e culturais do mercado. Isso faz alguém como Marine Le Pen [líder da Frente Nacional Francesa] muito feliz e, tendo rejeitado o reaganismo de seu pai, ela agora tem o luxo de citar Marx, Jaurès ou Gramsci! É claro, sua crítica nacionalista do capitalismo global nunca é muito inteligente ou filosoficamente coerente; mas ela é a única pessoa no atual deserto intelectual da França que está em contato com a experiência de vida das massas. Se não pudermos efetuar uma revolução cultural parecida com a do movimento espanhol Podemos, a Frente Nacional irá se sair bem.

Repubblica: Como você explica esta evolução da Esquerda?

Jean-Claude Michéa: O que agora é chamado de “A Esquerda” é o produto de um acordo defensivo estabelecido no início do século XX para afastar a direita reacionária formada por nacionalistas e pela Igreja: essencialmente, entre as grandes correntes do movimento socialista e as forças liberais e republicanas se afirmando herdeiras dos princípios de 1789 e do Iluminismo. Assim como Rosa Luxemburgo expôs nos seus artigos sobre o caso Dreyfus [na França, aproximadamente 1900], foi uma aliança bastante ambígua que tornou possível numerosas lutas de libertação até os anos 1960. Mas assim que foram eliminados os últimos vestígios do antigo regime, esta aliança só poderia resultar na derrota de uma ou outra das partes da união. Foi precisamente o que aconteceu nos anos 1970, quando o serviço de inteligência da Esquerda liderado por Michel Foucault e Bernard-Henri Levy ficaram convencidos de que o projeto socialista era essencialmente “totalitário”. A partir daí a Esquerda europeia retirou-se progressivamente para a posição liberal de Adam Smith e Milton Friedman e abandonou qualquer ideia de emancipação operária. E hoje está pagando o preço eleitoral.

Repubblica: Em que sentido o que você chama de “metafísica do progresso” tem guiado a Esquerda a uma aceitação do capitalismo?

Jean-Claude Michéa: A ideia do progresso é fundada na ideia de que “a História tem uma direção” e que cada passo para frente é sempre um passo na direção correta. Essa ideia foi muito efetiva desde que a luta fosse contra o antigo regime. O problema é que o capitalismo é de uma natureza diferente, no sentido de que não conhece “nenhum limite natural ou moral” (Marx); é um sistema dinâmico com a lógica de gradual colonização do globo e de todos os aspectos da vida humana. Assim as “forças do progresso” terminam focando apenas no “antigo mundo” e nas “forças do passado”, o que faz a crítica da modernidade liberal cada vez mais difícil, e confunde, como é o caso atualmente, a ideia de que “você não pode parar o progresso” com “você não pode parar o capitalismo.”

Repubblica: Nesta situação, como a Esquerda pode continuar se diferenciando da Direita?

Jean-Claude Michéa: Assim que a Esquerda oficial se convenceu de que o capitalismo era um ponto que não poderia ser superado no nosso tempo, foi inevitável que seu programa econômico se tornou cada vez mais indistinguível do programa da Direita liberal. Assim, pelos últimos 30 anos, tem procurado as novas classes médias através da adoção de um liberalismo cultural, ou seja, a aceitação de uma luta permanente contra os “tabus” do passado.

É claro, isso ignora o fato de que o capitalismo constitui uma “totalidade social”. Se a chave para o liberalismo econômico é, antes de tudo, como Hayek declarou, o direito de cada pessoa “produzir, vender e comprar tudo que puder ser produzido e vendido” (quer sejam drogas, armas químicas, serviços sexuais ou o útero de uma barriga de aluguel), é preciso concluir logicamente que isso não pode tolerar nenhum limite ou nenhum “tabu”. Isso na verdade conduz, de acordo com a famosa citação de Marx, ao afogamento de todos os valores humanos “nas águas glaciais do cálculo egoísta”.

Portanto se seguirmos George Orwell e aceitarmos que, ao contrário das nossas elites políticas, econômicas e culturais, as massas ainda estão atadas a valores morais como aqueles que promovem a sociedade civil e o senso de ajuda mútua, você consegue facilmente ver o motivo de sua falta de entusiasmo com a Esquerda moderna indo em direção ao liberalismo. Isto obviamente não significa que devemos ignorar o que são chamadas de “questões sociais” (como racismo ou homofobia). Mas é suficiente ter assistido ao maravilhoso filme de Matthew Warchus para entender que batalhas desse tipo somente são eficientes quando estão articuladas dentro das realidades das lutas sociais. A Esquerda moderna perdeu completamente o segredo dessa articulação.

Repubblica: Você acredita que a aceitação da Esquerda do capitalismo foi um erro. Mas outros enxergaram isso como uma evidência de seu realismo.

Jean-Claude Michéa: O estágio final do capitalismo, escreveu Rosa Luxemburgo em 1913, verá um período de “catástrofes”. Seria difícil descrever o período no qual estamos entrando de uma forma melhor. Catástrofes morais e culturais, porque nenhuma comunidade se sustenta na base de “cada um por si” e na busca do “interesse próprio”. Catástrofes ambientais, porque a ideia de progresso material infinito em um mundo finito é a ideia mais louca que já foi concebida. Catástrofes econômicas e financeiras, porque a acumulação de capital numa escala global (ou seja, o “crescimento”) irá deparar-se com aquilo que Marx chamou de sua “fronteira interna”; em outras palavras, a contradição entre o fato de a fonte de todo valor acrescentado, ou seja, de lucro ser o trabalho vivo, e a tendência contrária do capitalismo que resulta da concorrência global, declaradamente para aumentar a produtividade através da substituição incessante do trabalho por máquinas, computadores e robôs. O fato das “indústrias do futuro” criarem poucos empregos confirma a análise de Marx.

Existiu um tempo no qual os neoliberais pensaram que poderiam superar essa contradição imaginando, desde o início dos anos 1980, um novo tipo de crescimento, com uma indústria financeira desregulamentada constituindo o motor principal. O resultado tem sido que o volume de capital financeiro global já é mais de 20 vezes maior do que o PIB global. Isto significa que o “problema da dívida” se tornou completamente insolúvel, e temos agora a maior bolha especulativa da história, que vai estourar apesar de qualquer crescimento da “economia real”. Estamos, portanto, indo muito rápido em direção ao que Rosseau previu, que “a humanidade perecerá se não conseguir mudar seu comportamento”.

Repubblica: Nessa situação, por que você acha que é necessário “pensar com a Esquerda, contra a Esquerda”?

Jean-Claude Michéa: A maior força da crítica original socialista era que ela tinha compreendido, desde o início da revolução industrial, que um sistema social voltado apenas para a busca do lucro privado conduziria inevitavelmente a humanidade a um impasse. Paradoxalmente, é no momento em que este sistema começa a ceder sob o peso das suas próprias contradições que a Esquerda europeia escolheu reconciliar-se com ele, e considerar como “arcaica” qualquer crítica que tenha algum elemento radical. Teria sido muito difícil apostar em um cavalo pior! É portanto urgente atualmente “pensar com a Esquerda, contra a Esquerda”.>>

Matéria traduzida do spiritofeureka.org, originalmente publicada em 13 de janeiro de 2016

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