Pepe Escobar: “Confúcio está vencendo a guerra do COVID-19”

Compaream a serenidade de milhares de asiáticos em relação à crise do coronavírus com o medo, o pânico e a histeria do Ocidente.

Enquanto os anos 20 desencadearam uma reconfiguração radical no planeta, para todos os fins práticos, hoje, o coronavírus (literalmente “veneno coroado”) tem servido um verdadeiro cálice envenenado (de medo e de pânico) a uma diversidade de territórios — em sua maioria, ocidentais.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, de Berlim, vem argumentando energicamente que os vencedores disso tudo são os Estados asiáticos, como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan ou Cingapura, que têm uma mentalidade autoritária originada de sua tradição cultural [do] Confucionismo” . Han acrescenta:

 

As pessoas lá são menos rebeldes e mais obedientes do que na Europa. Eles confiam mais no Estado. A vida cotidiana é muito mais organizada. Acima de tudo, para enfrentar o vírus, os asiáticos estão fortemente comprometidos com a vigilância digital. As epidemias na Ásia são combatidas, não apenas por virologistas e epidemiologistas, mas também por cientistas da computação e especialistas em Big Data.

 

Trata-se, no entanto, de uma visão reducionista, de modo que muitas nuances devem ser apropriadamente aplicadas aqui. Vejamos a Coreia do Sul, por exemplo, que não é “autoritária”. Ela é tão democrática quanto as principais potências liberais-ocidentais. Mas ali, resumidamente, o que tínhamos era uma certa mentalidade cívica da parte da esmagadora maioria da população como reação às competentes e sólidas políticas do governo.

Seul optou pela mobilização rápida de conhecimentos científicos, testes massivos imediatos, rastreamento extensivo de contatos e distanciamento social. Mas, crucialmente, a maior parte foi voluntária, e não imposta pelo poder central. E como ambos os movimentos foram organicamente integrados, a Coreia do Sul não precisou restringir drasticamente a circulação ou fechar aeroportos.

O sucesso de Hong Kong, por outro lado, se deve em grande parte a um monumental sistema de saúde. Profissionais na linha de frente com memória institucional de epidemias recentes, como a SRA, estavam dispostos a entrar em greve se medidas sérias não fossem adotadas. O sucesso também pode ser atribuído, em grande proporção, às redes de ligações profissionais entre os sistemas de saúde de Hong Kong e Taiwan e os sistemas de saúde públicos.

Barbarismo com rosto humano

Depois temos a Big Data.

Han argumenta que nem na China, nem nas outras nações do leste asiático, existe uma análise criticamente suficiente em relação à vigilância digital e à Big Data. Mas isso também tem a ver com cultura: porque o Leste Asiático é coletivista — e o individualismo não se encontra na vanguarda.

Mas a questão é um pouco mais complexa. Em toda a região, o progresso digital é pragmaticamente avaliado em termos de eficácia. Wuhan recorreu à Big Data através de milhares de equipes de investigação, rastreando pessoas possivelmente infectadas e selecionando quem deveria estar sob observação e quem deveria que ser colocado em quarentena. Tomando emprestado a expressão de Foucault, podemos chamar isso de biopolítica digital.

Nessa esteira, Han está correto precisamente quando diz que a pandemia pode redefinir o conceito de soberania:

 

O soberano é quem recorre aos dados. Quando a Europa proclama um Estado de Emergência ou fecha fronteiras, ainda está acorrentada a velhos modelos de soberania.

 

A resposta, em toda a UE (incluindo, especialmente, a Comissão Europeia em Bruxelas), tem sido terrível. Evidências gritantes da impotência e da falta de preparos sérios têm surgido, apesar da UE ter visto um avanço em seu modo de lidar com o problema.

Seu primeiro instinto foi fechar fronteiras, acumular quaisquer equipamentos insignificantes disponíveis e, então, no estilo do darwinismo social, seria cada nação por si mesma — com uma Itália abatida e deixada totalmente por conta própria.

A gravidade da crise, especialmente na Itália e na Espanha, com idosos morrendo em prol do “benefício” dos jovens, deveu-se a uma escolha muito específica da economia política da UE: o ditame de austeridade imposto em toda a zona do euro. É como se, de uma maneira macabra, Itália e Espanha estivessem pagando literalmente com sangue para permanecer no eixo de uma moeda (o euro) que eles nunca deveriam ter adotado em primeiro lugar.

Em termos de futuro, Slavoj Zizek prevê, para o Ocidente, “uma nova barbárie com um rosto humano, medidas de sobrevivência impiedosas aplicadas com pesar e até simpatia, mas legitimadas por opiniões de especialistas”.

Em contraste, Han diagnostica que a China, agora, poderá vender seu Estado Policial Digital como um modelo de sucesso contra a pandemia: “A China ostentará a superioridade de seu sistema com ainda mais orgulho”.

Alexander Dugin se aventura muito além de qualquer outro. Ele já está conceituando a noção de um Estado em Mutação (como o próprio vírus) se transformando em uma “ditadura médico-militar”, assim como traçando o diagnóstico de que estamos testemunhando o colapso do mundo liberal-global em tempo real.

Diante da tríade

De minha parte, ofereço, como hipótese de trabalho, que a tríade asiática Confúcio, Buda e Lao Tsé tem sido absolutamente essencial para moldar a percepção e a resposta serena de centenas de milhões de pessoas, em várias nações asiáticas, ao COVID-19. Compare essa resposta ao medo prevalecente, o pânico e a histeria — alimentados principalmente pela mídia corporativa — em todo o Ocidente.

O Tao (“o caminho”), estabelecido por Lao Tsé, é sobre como viver em harmonia com o mundo. Estar confinado, necessariamente, leva a um mergulho no yin ao invés de no yang, ou seja, diminuímos a velocidade e embarcamos em um mar de reflexão.

Sim: é tudo sobre cultura, e cultura enraizada na filosofia antiga e praticada na vida cotidiana. É assim que podemos entender o wu wei — a “ação da não-ação” — aplicada a como lidar com uma quarentena. A “ação da não-ação” significa ação sem intenção. Em outras palavras, ao invés de lutar contra as vicissitudes da vida — como durante o enfrentamento de uma pandemia —, devemos permitir que as coisas sigam seu curso natural.

Isso fica mais fácil de visualiza quando conhecemos este ensinamento do Tao: A saúde é a maior possessão. O contentamento é o maior tesouro. A confiança é o maior amigo. O não-ser é a maior alegria”.

Também ajuda entender que a vida é uma série de escolhas naturais e espontâneas. Não resista a ela — isso apenas gera tristeza. Deixe a realidade ser realidade. Deixe as coisas fluírem naturalmente, adiante, da maneira que quiserem”.

O budismo se delineia paralelamente ao Tao:

“Todas as coisas condicionadas são impermanentes. Quando alguém enxerga isso com sabedoria, afasta-se do sofrimento”.

E, para manter nossas vicissitudes em equilíbrio, ajuda também entender que: “Melhor é viver um dia vendo a ascensão e queda das coisas do que viver cem anos sem nunca ver a ascensão e queda dessas coisas”.

Quanto a manter o tão necessário equilíbrio, vale recordar que “a raiz do sofrimento é o apego”.

E então, a perspectiva final:

“Algumas pessoas não entendem que devemos morrer. Mas aqueles que se dão conta desta verdade, solucionam as intrigas”.

Confúcio tem sido uma presença marcante na linha de frente contra o COVID-19, pois 700 milhões de cidadãos chineses foram mantidos por semanas sob diferentes formas de quarentena. E assim, nós podemos facilmente imaginá-los agarrados a algumas pérolas de sabedoria, como, por exemplo, “morte e a vida têm seus compromissos determinados; e a riqueza e as honras dependem do céu”. Ou: “Aquele que aprende, mas não reflete, está perdido; e aquele que pensa, mas não aprende, está em grande perigo”. E acima de tudo, em uma hora de extrema turbulência, traz conforto saber que “a força de uma nação deriva da integridade do lar”.

E em termos de combate a um inimigo perigoso e invisível, ajuda ainda conhecer essa regra de ouro: “Quando for óbvio que os objetivos não podem ser alcançados, não ajuste os objetivos, ajuste os passos da ação”.

Qual seria, então, a perspectiva derradeira que um Oriente sereno pode oferecer ao Ocidente em tempos tão difíceis? É simples (e está tudo no Tao): “Do cuidado vem a coragem”.

 

Artigo publicado originalmente no @AsianTimes

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Pepe Escobar

Analista geopolítico independente, colunista para o The Cradle e editor do Asia Times.

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Um comentário

  1. O Livro Tibetano dos Mortos e’ um bom exemplo da riqueza dos ensinamentos orientais, verdadeira fonte de conhecimento e serenidade.

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