Glauber Rocha e Walter Benjamin: violência e desconstrução da História

Algumas reflexões sobre a estética-política do cineasta baiano. 

Existem muitas pontes possíveis entre os olhares de Walter Benjamin e Glauber Rocha. Não sei se o cineasta baiano leu o filósofo; penso que não. É mais provável que as congruências se devam a convergências na percepção estética, no legado algo barroco que serve de encontro a certos elementos da cabala e mística judaica (que alimentava grande parte das teorias de Benjamin) e da formação protestante que marcou a biografia de Glauber.

Para Benjamin, o emblema mais eloquente do significado da História é a ruína, uma realidade que pode ser compreendida em meio à catástrofe, a ”face hipocrática” que revelaria a natureza da história como queda e morte. A História como catástrofe não pode ser redimida senão pela decomposição de seus elementos da totalidade que lhes dá sentido, a fim de que possam ser reordenadas em uma nova completude por uma subjetividade algo demiúrgica. A contemplação da ruína era condição sine qua non para a alegorização, por meio da qual o sujeito escapava do reino putrefato das coisas mortas e recriava de certa maneira o PARDES.

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A alegoria tem um papel fundamental na obra de Glauber Rocha, que também dissolve a História e com seus fragmentos reconstrói múltiplas camadas de sentido marcadas por descontinuidades e simultaneidades.

Da mesma forma que em Benjamin, a violência tem um peso inescapável na obra do baiano. Para o filósofo judeu, ela é potência divina de reinstituição de um mundo perdido; para o gênio brasileiro, é a força catártica por meio da qual o colonizado declarava seu modo e direito à existência para o colonizador.

Mas me parece que há em Glauber a recuperação de um vislumbre medieval sobre a natureza da História, só capaz ao protestante que mergulhou no universo da religiosidade popular brasileira (um processo similar parece acontecer com Suassuna).

A alegoria caminha para o terreno do sono, do imaginário, do êxtase, do transe e da incorporação, e refaz as ligações com a escatologia do cristianismo tradicional, marcada fundamentalmente não apenas por uma redenção ”fora da historia”, mas por uma ressurreição que transfigura a própria historicidade num confronto de sabor apocalíptico. Ao messianismo místico e cabalista de Luria, Glauber contrapõe, ainda que de forma não reflexiva, a explosão escatológica cristã, ritualizada e divinizada.

Quando se analisa dessa maneira, é possível perceber os méritos e também os limites de Bacurau. Ali também temos uma alegoria do Brasil, repercutindo a Eldorado da Pátria Grande de Glauber. A narrativa inicial de uma mulher que retorna à comunidade de origem no Sertão para o funeral da matriarca dá conta desse olhar para si mesmo que inaugura o drama atemporal da cidade.

Mas em vez de mergulhar no universo imagético da cultura e do rito popular, Mendonça Filho e Julio Dornelles a substituem pela viagem estimulada por um psicotrópico cujos efeitos são vislumbrados pelo espectador a partir ”de fora” – uma percepção leiga e profana.

Há um desencantamento nas alegorias de Bacurau que impede que se mergulhe totalmente no universo e na alma do Brasil. Daí também a dificuldade de se apreender o verdadeiro significado da figura andrógina e ambígua de Lunga, excluído da comunidade para ser depois reintegrado na hora do perigo como um tipo de “clown sagrado”.

Faltou “pouco” para Bacurau ser mesmo o Sertão. Mas foi a melhor tentativa em muito tempo.

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André Luiz dos Reis

 

 

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