A história secreta de como Cuba ajudou a acabar com o apartheid na África

Enquanto o mundo se concentra no aperto de mão histórico de terça-feira entre o presidente Obama e o presidente cubano Raúl Castro, olhamos de volta para o papel central que Cuba desempenhou no fim do apartheid e por que Castro foi um dos cinco líderes mundiais convidados a falar no memorial de Nelson Mandela. Nas palavras de Mandela, Cuba “destruiu o mito da invencibilidade do opressor branco… [e] inspirou o povo combatente da África do Sul”. O historiador Piero Gleijeses afirma que foi a vitória de Cuba em Angola em 1988 que forçou Pretória à deixar a Namíbia livre e ajudou a acabar com o apartheid na África do Sul. Nós conversamos com Gleijeses sobre seu novo livro, “Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria, and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991”, e apresentamos gravações de Mandela encontrando-se com Fidel Castro em Cuba.

Transcrição:

Nermeen Shaikh: Vamos agora ao momento histórico de terça-feira quando o Presidente Barack Obama trocou um aperto de mão com o presidente Cubano Raúl Castro enquanto ambos participavam da cerimônia em memória do líder anti-apartheid Nelson Mandela na África do Sul. A Casa Branca disse que o aperto de mão não foi planejado. Foi a primeira vez que um presidente dos EUA apertou a mão de um líder cubano desde 2000. Em Washington, republicanos expressaram indignação com o ato. Durante uma audiência na Câmara, a representante republicana Ileana Ros-Lehtinen da Flórida discutiu com o Secretário de Estado Jonh Kerry, que disse que o ato não representa mudança alguma na política dos EUA em relação à Cuba. 

Rep. Ileana Ros-Lehtinen: Sr. Secretário, às vezes um aperto de mão é só um aperto de mão. Mas quando o líder do mundo livre aperta a mão sangrenta de um ditador cruel como Raúl Castro, isso se torna um golpe de propaganda política para o tirano. Raúl Castro usa aquela mão para assinar as ordens de repressão e prisão dos defensores da democracia. Na verdade, nesse momento, enquanto falamos, os líderes opositores cubanos estão sendo presos, e estão sendo agredidos enquanto tentam comemorar a data de hoje, que é o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Eles ficarão desanimados quando verem essas fotos. Você pode, por favor, dizer ao povo cubano vivendo sob aquele regime repressivo, que apesar de um aperto de mão a política dos EUA em relação à sádica e cruel ditadura cubana não enfraqueceu? Obrigado.

Secretário de Estado John Kerry: Senhoras e senhores, o propósito de hoje é honrar Nelson Mandela. E o presidente está em um funeral internacional com líderes de todo o mundo. Ele não escolheu quem está lá. Eles estão lá para honrar Nelson Mandela. E nós apreciamos que pessoas de todas as partes do mundo e de todas as crenças e estilos de vidas que apreciaram Nelson Mandela e/ou eram seus amigos vieram honrá-lo. E eu penso, como disse o presidente – eu recomendo que você leia o discurso dele, se você ainda não viu ou não leu, porque o presidente disse hoje em seu discurso em honra à Nelson Mandela, ele disse, “Nós exortamos os líderes para que honrem a luta de Mandela pela liberdade garantindo os direitos humanos básicos de seus povos”-

Rep. Ileana Ros-Lehtinen: E você diria que o Raúl Castro está garantindo os direitos humanos básicos deles?

Secretário de Estado John Kerry: Não, de forma nenhuma.

Amy Goodman: O alvoroço causado pelo aperto de mão do presidente Obama com Raúl Castro chamou a atenção para a estreita relação entre o movimento sul-africano anti-apartheid e Cuba. Em 1991, Nelson Mandela visitou Cuba com o então presidente Fidel Castro. Esse é um clipe de quando eles se encontraram pela primeira vez.

Nelson Mandela: Antes de mais nada, você deve me dizer quando que virá para a África do Sul. Veja – não, só um momento, só um momento, só um momento.

Presidente Fidel Castro: [traduzido] Quanto antes, melhor.

Nelson Mandela: E fomos visitados por muitas pessoas diferentes. E nosso amigo, Cuba, que ajudou no treinamento do nosso povo, nos deu recursos para manter nossa luta, treinou médicos em nosso povo e a SWAPO, você não veio para o nosso país. Quando você vem?

Presidente Fidel Castro: [traduzido] Eu ainda não visitei a minha pátria sul-africana. Eu a quero, eu a amo como a uma pátria. Eu a amo como pátria assim como eu amo você e o povo sul-africano.

Amy Goodman: Bem, para continuarmos falando à respeito do papel chave de Cuba para o fim do Apartheid na África vamos agora para Washington D.C., com Piero Gleijeses, professor de política externa americana na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins. Ele utiliza arquivos dos Estados Unidos, Africa do Sul e Cuba para fornecer uma visão da história sem precedentes em seu último livro: “Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria, and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991”. Você pode ler o prólogo do livro em nosso site em democracynow.org.

Professor Gleijeses, bem-vindo ao Democracy Now! Fale sobre esse relacionamento chave, porque Cuba foi tão importante para o movimento anti-apartheid.

Piero Gleijeses: Cuba é o único país no mundo que enviou os seus soldados para enfrentar o exército do apartheid e derrotou o exército do apartheid, o exército sul-africano, duas vezes – em 1975, 1976 e em 1988. E em Havana, quando ele visitou Havana em julho de 1991 – eu não serei capaz de repetir exatamente as palavras de Nelson Mandela, mas Nelson Mandela disse, “A vitória cubana”, referindo-se à vitória de Cuba sobre os sul-africanos em Angola em 1988, “destruiu o mito da invencibilidade do opressor branco e inspirou o povo combatente da África do Sul. Cuito Canavale,” que é uma vitória dos cubanos em Angola, “é o momento decisivo na liberação de nosso continente e do meu povo do flagelo do apartheid”. Então, em –

Amy Goodman: Para um país que sabe muito pouco, Professor Gleijeses, sobre a experiência cubana, sua intervenção militar na Angola, você pode voltar um pouco no tempo e explicar o que o presidente Castro – o que Fidel Castro e esses soldados cubanos fizeram?

Piero Gleijeses: Claro. Em 1975, ocorre a descolonização de Angola, colônia portuguesa que se tornaria independente em 11 de novembro de 1975. Há uma guerra civil entre três movimentos: um apoiado pelos cubanos, os cubanos que apoiaram sua luta contra os portugueses ao longo dos anos; os outros dois apoiados pela África do Sul e os Estados Unidos. E o movimento apoiado pelos cubanos, o MPLA, que está no poder hoje na Angola, tendo vencido a eleição livre, estava prestes a ganhar a guerra civil. E ele estava prestes a ganhar a guerra civil – uma paráfrase do que o chefe do posto da CIA na Angola à época me disse – porque ele era o movimento mais comprometido com os melhores chefes, o melhor programa. E para evitar a vitória deles, a vitória do MPLA, em outubro de 1975, incitada por Washington, a África do Sul invadiu. E as tropas sul-africanas avançaram sob Luanda, e eles teriam conquistado Luanda e esmagado o MPLA se Fidel Castro não tivesse decidido intervir. E entre novembro de 1975 e abril de 1976, 36.000 soldados cubanos desembarcaram em Angola e empurraram os sul-africanos de volta para a Namíbia, que a África do Sul controlava na época.

E isso teve um impacto psicológico imenso – falando da África do Sul – na África do Sul, tanto entre brancos como entre negros. E o maior jornal negro sul-africano, The World, escreveu em um editorial em fevereiro de 1976, em um momento em que as tropas sul-africanas ainda estavam em Angola, mas os cubanos estavam fazendo com que elas recuassem – que haviam evacuado a região central de Angola. Eles estavam na região sul de Angola. O desastre estava anunciado. E esse jornal, The World, escreveu, “a África negra está na crista da onda gerada pela vitória cubana em Angola. A África negra está provando o vinho inebriante da possibilidade de conseguir libertação total.” E Mandela escreveu que estava na cadeia em 1975 quando ficou sabendo da chegada das tropas cubanas em Angola, e foi a primeira vez em que um país veio de outro continente não para levar algo embora, mas para ajudar os africanos a conquistar sua liberdade.

Essa foi a primeira contribuição real de Cuba para a liberação da África do Sul. Foi a primeira vez na história recente que os “gigantes brancos”, o exército do apartheid, foi forçado a se retirar. E eles se retiraram por causa de um exército não branco. E em uma situação de colonialismo interno, isso é extremamente importante. E depois disso, os cubanos permaneceram em Angola para proteger Angola do exército da África do Sul. Até mesmo a CIA reconheceu que os cubanos eram a garantia para a independência de Angola. E na Angola, eles treinaram o CNA, o Congresso Nacional Africano, de Mandela. E relação muito estreitas se desenvolveram entre os dois. Eu não sei se você quer que eu continue e fale acerca do próximo momento, ou você quer me interromper com algumas questões.

Nermeen Shaikh: Sim, Professor Piero Gleijeses, você pode falar especificamente sobre o papel de Che Guevara na África?

Piero Gleijeses: Sim, Che Guevara não teve relação alguma com a África do Sul. O papel –

Nermeen Shaikh: Na África, no entanto, no Congo e Angola

Piero Gleijeses: Sim, eu entendo. O papel de Che Guevara em 1964 e 1965 – no final de 1964, Che Guevara foi enviado por Fidel Castro como seu principal representante para a África subsaariana – foi a primeira visita de um importante líder cubano à África subsaariana – porque os cubanos acreditavam que havia uma situação revolucionária na África central, e eles queriam ajudar. E Che Guevara estabeleceu relações com vários movimentos revolucionários. Um deles, o MPLA, o Movimento Popular de Libertação de Angola, que estava situado no Congo – Brazzaville. E em 1965, os primeiros cubanos lutaram no território angolano junto com o MPLA. Mas o principal papel desempenhado por Che Guevara foi que ele levou um grupo de cubanos para o Congo, o antigo Congo belga, onde havia uma revolta dos seguidores do falecido Lumumba contra o governo central imposto pelos Estados Unidos. E os Estados Unidos criaram um exército de mercenários brancos, os “gigantes brancos”, principalmente sul-africanos e rodesianos e então europeus, para esmagar essa revolta. E os cubanos foram à pedido dos rebeldes, à pedido dos governos do Egito, Algéria e Tanzânia para ajudar os rebeldes.

Amy Goodman: Hã –

Piero Gleijeses: E – sim?

Amy Goodman: Professor, eu quero voltar para a Angola –

Piero Gleijeses: Sim.

Amy Goodman: – e dessa vez falar do ex-secretário de estado Henry Kissinger. Esse é Kissinger explicando porque os EUA estavam preocupados com os tropas cubanas que Fidel Castro enviara para lutar em Angola. Depois de Kissinger, você vai escutar o próprio Fidel Castro.

Secretário de Estado Henry Kissinger: Nós acreditamos, em relação à Angola, que se a União Soviética pudesse intervir a tais distâncias, de áreas distantes das tradicionais preocupações russas, e quando as forças cubanas pudessem ser introduzidas em pontos distantes, se o ocidente não pudesse encontrar uma resposta à isso, então o sistema internacional inteiro poderia ser desestabilizado.

Presidente Fidel Castro: [traduzido] Era uma questão de globalizar nossa luta vis-à-vis com as coações globalizadas e o assédio dos EUA. Nesse sentido, não estávamos de acordo com o ponto de vista da União Soviética. Nós agimos, mas sem a cooperação deles. Muito pelo contrário.

Amy Goodman: Esse foi o presidente Fidel Castro e, antes dele, o secretário de estado Henry Kissinger a partir do filme CIA & Angolan Revolution. Professor Gleijeses?

Piero Gleijeses: Ok, dois pontos. Primeiro, Kissinger não menciona que os cubanos interviram em resposta à invasão sul-africana e que os Estados Unidos foi conivente com os sul-africanos e instaram os sul-africanos a invadirem. Então, aqui, há uma questão bastante importante de cronologia.

A segunda questão é que no último volume de suas memórias, Kissinger, que no geral é uma pessoa muito arrogante, reconhece que ele cometeu um erro. E o erro que ele cometeu foi em dizer que os cubanos interviram como representantes da União Soviética. E ele escreve em suas memórias que em realidade foi uma decisão cubana e que os cubanos interviram e confrontaram os soviéticos com um fait accompli. E então ele faz uma pergunta em suas memórias: porque Castro tomou essa decisão? E a resposta de Kissinger é que Fidel Castro era provavelmente – estou citando – “foi provavelmente o mais genuíno líder revolucionário então no poder”. Então, há dois Kissingers, se você quiser, e há o Kissinger de suas memórias, onde ele diz algumas coisas que realmente são verdadeiras.

Amy Goodman: Piero Gleijeses, o que você pensa da polêmica desse momento? Você acabou de escutar a congressista Lehtinen da Flórida atacando Jonh Kerry, você sabe, sobre o significado do aperto de mão entre o presidente Obama e o presidente Raúl Castro bem ali, no estádio Soweto, durante a cerimônia para Nelson Mandela.

Piero Gleijeses: Eu acho que é patético e reflete a ética dos Estados Unidos e a política dos Estados Unidos. Obama, presidente Obama, foi recebido com aplausos na África do Sul quando ele falou, etc., porque ele é o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Mas o papel dos Estados Unidos como país, como governo, governos passados, na luta pela liberação da África do Sul, é um papel vergonhoso. Em geral, estávamos do lado do governo do apartheid. E o papel de Cuba é um papel esplêndido em favor da liberação. Esse aperto de mão – indo além dessa questão em particular, o aperto de mão estava muito atrasado. O embargo é absurdo, é imoral. E nós temos aqui um presidente que se curvou para o rei da África do Sul – da Arábia Saudita, me desculpem, que certamente não é uma democracia. Eu quero dizer, até Obama deve saber disso. Então é uma situação absurda. O problema com Obama é que seus discursos são bons, seus gestos são bons, mas as ações não acompanham. Então, infelizmente, é só um gesto, um gesto muito atrasado que não muda a política vergonhosa dos EUA.

Nermeen Shaik: Professor Piero Gleijeses, antes de concluirmos, vamos ver Fidel Castro falando na África do Sul em sua visita em 1998.

Presidente Fidel Castro: [traduzido] Que a África do Sul se torne um modelo de um mundo futuro mais justo e mais humano. Se você puder, seremos todos capazes de fazê-lo.

Nermeen Shaik: Esse foi Fidel Castro falando em 1998 na África do Sul, enquanto o ex-presidente, que acabou de falecer, Nelson Mandela, o aplaudia. Piero Gleijeses, nós temos apenas um minuto. Você poderia falar sobre o que mais lhe surpreendeu em sua pesquisa nos arquivos cubanos acerca dessa história?

Piero Gleijeses: Bem, há muitas coisas. Uma é a independência da política cubana vis-à-vis com a União Soviética. Há confrontos entre Fidel Castro e Gorbachev. Há confrontos entre os líderes da missão militar cubana em Angola e os líderes soviéticos, que eu em realidade menciono em meu livro e que são leituras fascinantes. Essa é uma coisa.

Mas outra coisa que me impressionou muito é o respeito com que os cubanos trataram o governo angolano. Isso é muito importante, porque o governo angolano realmente dependia de Cuba para sua sobrevivência, a presença das tropas cubanas como um escudo contra a invasão sul-africana, que era uma ameaça constante, e a grande e generosa assistência técnica que Cuba estava fornecendo para Angola. E a tendência seria tratar um governo que é tão dependente com algum tipo de superioridade. E isso é algo que eu nunca encontrei nas relações internacionais, esse tipo de respeito com o qual Cuba tratou o que, considerando todos os objetivos, deveria ter sido um governo cliente. E é particularmente impressionante para alguém que estuda os Estados Unidos e mora nos Estados Unidos, porque sinceramente o governo dos Estados Unidos não trata um governo que dependa de Washington com muito respeito.

Amy Goodman: Piero Gleijeses, muito obrigado por estar conosco.

Piero Gleijeses: Eu que agradeço.

Amy Goodman: Professor de política externa americana na SAIS, Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins. Nós iremos postar o prólogo do seu livro em nosso site. O livro acabou de sair; se chama “Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria, and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991”, publicado pela University of North Carolina Press. Vá para democracynow.org para ler o prólogo.

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