O Fado (Parte III) – Amália Rodrigues: A voz que cantou Portugal no Mundo

Encerrando nosso percurso pelo fado, culminamos nossa viagem com Amália Rodrigues, a figura mais representativa do fado ao longo do século XX, e que se tornou o nome e imagem da arte portuguesa no mundo, levando o imaginário lusitano e a língua portuguesa aos maiores palcos do planeta.

No início do século passado, o conteúdo e o destino do “fado”, com sua fase de popularização agora concluída, tornaram-se parte do tecido social e dos eventos políticos de Portugal.

Já nos últimos anos do século XIX alguns eventos de grande importância haviam “ofendido” profundamente o orgulho nacional, levando ao aparecimento dos primeiros dissensos contra a Monarquia Constitucional e o Governo, culpados aos olhos da maioria de ter conduzido uma política colonial desastrosa, como evidenciado pela subserviência à Grã-Bretanha. O sonho de um centro-sul português – o famoso “mapa cor-de-rosa” de 20 de fevereiro de 1886, aquele corredor que deveria unir Angola e Moçambique, ambas colônias portuguesas – desapareceu com o ultimato britânico de 11 de janeiro de 1890, que obrigou Portugal a retirar suas tropas do território. Era o início de uma crise profunda que levaria a população a perder progressivamente a confiança no governo central. O próprio regime monárquico tornou-se objeto de críticas por parte da crescente oposição republicana, que inclusive expressaria seu dissenso e suas ideias sobre o assunto na música, com os chamados “fados socialistas” e “fados republicanos” [Osório, 1974: 66-67].

A casa reinante – a dos Bragança -, investida por uma profunda crise moral e política, resistirá por um pouco mais de tempo às pressões exercidas pela oposição republicana. Em 1º de fevereiro de 1908 Carlos I foi assassinado, juntamente com seu filho mais velho, o príncipe Luís-Felipe. Dois anos mais tarde, seu sucessor, Manuel II, foi destronado e forçado ao exílio. Em 5 de outubro de 1910, a República foi proclamada.

Foi naqueles anos que ocorreu a primeira distorção da “canção triste” – notoriamente estranha, desde sua aparição, a toda manifestação política – e com ela as primeiras polêmicas. Famoso é aquela entre o anarquista Avelino de Sousa, diretor do jornal “A Voz do Operário”, e os escritores Samuel Domingos Maia (sob o pseudônimo “Dr. Felix”) e Albino Forjaz de Sampaio, que, nas páginas, respectivamente, de “O Século” e “A Luta”, expressam suas considerações, certamente não benevolentes, sobre o “fado”, acompanhado, no caso de Domingos Maia, de um adjetivo bastante pesado, como “vil”, “terebintina”, “sujo”, “maluco”. A resposta de Avelino de Sousa – que encobre o “fado” de um significado exageradamente ideológico, entendendo-o quase como uma redenção social das classes oprimidas – encontra amplo espaço em seu próprio jornal, com uma série de artigos publicados semanalmente na primavera de 1912, depois recolhidos, no mesmo ano, em um livreto intitulado “O fado e os seus censores”. Segundo Sousa – que arrasta na querela também um músico e musicólogo estabelecido, António Arroio, culpado de ter definido o “fado”, no volume “O canto coral e a sua função social” (1909), como uma composição deselegante e pobre e, portanto,, inadequada para representar todo o Portugal – este tipo de canção tem uma utilidade social, tem uma função educativa muito específica, tanto em destacar as desigualdades e as disparidades de classe como em denunciar a imoralidade desenfreada, tudo isto confirmando sua natureza eminentemente popular. Nas tristes notas da “guitarra” – Avelino de Sousa afirma em substância – o povo toma consciência de si mesmo, de sua força potencial e de suas fraquezas, mostrando solidariedade e aprendendo lições de vida [Sousa, 1912].

Os eventos políticos em torno da Primeira Guerra Mundial colocaram a “questão fadista” em segundo plano, sem mais intervenções polêmicas até o advento do salazarismo.

Durante a década de 1920 Portugal passou por um período político muito difícil, com uma instabilidade institucional muito alta (vinte e nove governos no espaço de apenas sete anos, de 1919 a 1925, intercalados por uma série de golpes de Estado de curta duração) e uma crise econômica muito grave. Assim, chegamos à primavera-verão de 1926, período em que foram criadas as condições para uma ditadura militar estável. Foi nesses anos que surgiu Antônio de Oliveira Salazar, inicialmente como Ministro da Fazenda e do Tesouro (27 de abril de 1928) e depois como Primeiro Ministro, a partir de 5 de julho de 1932.

Sob o novo regime, todas as expressões artísticas que não correspondessem ou não estivessem de acordo com as diretrizes de poder seriam opostas. Entre estes, o “fado” que, por algumas de suas características – como dor, melancolia, pessimismo – aparece derrotista e, conseqüentemente, incompatível com a imagem de força e coragem que o salazarismo pretende dar de si mesmo, dentro e fora do país. Em seguida, em meados da década de 1930, o confronto dialético sobre ele reabriu.

Em 1936, Luís Moita, um dos maiores críticos do momento, deu oito aulas de rádio com a intenção declarada de mudar a mente dos muitos admiradores do “fado”. Um pouco mais tarde naquele ano, para melhor atingir o objetivo, ele resumirá suas lições de rádio em um trabalho com o eloquente título “O fado. Canção de vencidos”, dedicada à “Mocidade Portuguesa”, o movimento juvenil oficial do Salazarismo [Moita, 1936].

Contra este novo ataque surgiu um coro de protestos, acompanhado por vários escritores e intelectuais. Foi o caso de Pinto Guimarães, que, em 1938, como resposta direta a Luís Moita, publicou o panfleto “Fado, canção vencedora”. Os argumentos a favor da “canção triste” expressa por Pinto Guimarães podem ser resumidos da seguinte forma: o “fado” é, ao mesmo tempo, arte e manifestação da alma do povo português, como “seu canto nacional, psíquico, ético e espiritualista”; “é a vibração íntima do povo que trabalha e produz; do trabalhador intelectual, que pensa e age; do homem que dirige, do homem que realiza”. Dirigindo-se, então, a todos aqueles que consideram as canções regionais as únicas dignas de representar toda a nação, Guimarães observaria que tais canções, justamente por serem localizadas, não saem da esfera regional; ao contrário do “fado”, que vai até além das fronteiras nacionais [Guimarães, 1938: 3-4].

As relações do “fado” com a classe política no poder serão bastante contrastantes. No início e por um certo período, foi rotulado, em função puramente depreciativa, como “choradinho” como se o rejeitassem como algo socialmente inútil. O “mundo” do “fado”, no entanto, continuará indiferente a qualquer tipo de ironia, boa ou má, que lhe seja dirigida. Como se fosse uma entidade superior, absolutamente não inclinada a participar das acaloradas e muitas vezes vulgares disputas terrenas. Um corpo – como podemos dizer? – super partes que, firmemente ancoradas na tradição, desdenham governos e ideologias.

Mais tarde, o regime salazarista irá reabilitá-lo e, ao fazê-lo, suavizará seus contrastes mais estridentes e polêmicos. Este tipo de “fado” será rotulado em certos círculos “esquerdistas” como “fado vadio”, já que é esvaziado de todo significado ideológico [1]. Também terá apoiadores e detratores. Neste sentido, é bom dizer que o “fado” nunca foi fascista ou salazarista, embora ainda hoje algumas pessoas o critiquem neste sentido. Nunca foi, porque nunca cantou os louvores ou fez apologia do regime [2].

A “triste canção” sempre foi caracterizada, tanto no passado (remoto e próximo) como no presente, pelo drama dos textos, que estão intimamente relacionados com situações de contraste, como a que ocorre entre classes opostas. Os ricos e os pobres, por exemplo, são dois dos elementos clássicos da “historiografia fadista”: um suscita indignação e desaprovação, pois é apresentado como um miserável e explorador da miséria humana; o outro recebe simpatia e solidariedade, pois é perseguido pela desgraça, pela doença, pela miséria, enfim, por todo aquele conjunto de situações adversas que leva o nome de Destino, Fado (“fado” = canção fatal). Sou de opinião, entretanto, que instrumentalizar, para fins ideológicos e políticos, este e outros tipos de contraste é totalmente inapropriado.

Na verdade, é bem conhecido que o drama, mesmo aquele representado pelo contraste rico/pobre, não tem “coloração ideológica”, já que sempre foi um dos componentes básicos da literatura e da arte em geral. Tanto assim, porém, que nos textos de alguns dos “fadistas” mais comprometidos, este contraste se torna politizado, transformando-se em uma luta de classes. Estes textos, que são impossíveis de passar pela censura, circulam, especialmente durante os anos quarenta e cinqüenta, de forma clandestina. Em princípio, precisamente como conseqüência desta politização extrema, o “fado” será obrigado, por assim dizer, a lidar com outras coisas. Provavelmente, a escolha não é totalmente negativa, pois estimulará a busca de novos temas para os textos. Não implica, no entanto, a abdicação total de denúncias sociais. Porque, substancialmente, no curso de toda sua evolução – e, portanto, também durante o regime salazarista (talvez, às vezes, recorrendo a eufemismos lingüísticos e textos herméticos para dificultar aos censores a detecção de certas declarações provocatórias) – o “fado” nunca perdeu de vista a realidade.

Após a Segunda Guerra Mundial e até os anos sessenta, Portugal foi reavivado economicamente. Ao mesmo tempo, a “triste canção” viveu sua segunda era de ouro, graças não apenas à qualidade dos artistas, mas também ao desenvolvimento do turismo, que, se por um lado, determinou sua difusão nacional e internacional, por outro lado, alterou em parte o que tinha sido suas condições ambientais e culturais originais. O “fado” se torna um produto comercial a ser vendido a estrangeiros. Está adaptado às necessidades do mercado, com o aumento de produção recorde, e com as “casas de fado” e os “restaurantes típicos” que crescem a passos largos, a fim de satisfazer a demanda de uma clientela estrangeira em rápido crescimento. Esta primeira forma de consumismo musical teve grande sucesso. O consenso suscitado pela novidade é forte, quase unânime, embora haja quem discorde e critique duramente aquelas premissas fadistas que, de alguma forma, ultrapassaram as inovações [3].

Certamente, porém, junto com o país, também o “fado” renasce. O “antigo”, mais amador do que qualquer outra coisa, dá lugar ao “moderno”, profissional, e que diversifica ainda mais, de acordo com o assunto, as métricas, o tipo de instrumentação. Nasce o “fado-canção”, com acompanhamento orquestral, ao contrário do “fado rigoroso”, executado com instrumentos clássicos (“guitarra” e “viola”). O “fado jocoso”, também conhecido como “fado Macau”, em certo sentido alegre, baseado na ironia e na provocação, também ganhou vida. Deve-se dizer também que o número de textos excede o da música, uma vez que há variações em muitos “fados”. Quando isso acontece, geralmente se fala de “fado-fado”, ou seja, “fado” do “fado”, já que os artistas individuais mudam as palavras, mas a música permanece mais ou menos a mesma. Além disso, existe o chamado “fado próprio”, composto para um determinado artista, adaptado às suas características vocais [4]. Esta ampla gama de possibilidades interpretativas favorece o processo de folclorização do produto. O resultado não é apenas uma maior difusão, dentro e fora das fronteiras, mas também uma notoriedade internacional para os melhores “fadistas”.

Amália Rodrigues e a internacionalização do “fado”

A quarta fase fadista (do final dos anos 30 até hoje) também é conhecida como a fase do profissionalismo, justamente porque há muitos cantores e músicos que conseguem “monetizar” suas qualidades vocais e instrumentais assinando contratos com “casas de fado”, rádios, teatros, gravadoras e, mais tarde, com a televisão. Os empresários fizeram de tudo para pegar os elementos mais talentosos, e os preços das exibições subiam ou caíam de acordo com as leis do mercado.

A partir dos anos quarenta, houve uma luta feroz para escapar da mediocridade e tentar o sucesso. No campo masculino, duas figuras em particular se estabeleceram, Alfredo Rodrigo Duarte, mais conhecido como Alfredo Marceneiro – o indiscutível “rei” do fado, premiado postumamente, em 1984, dois anos após sua morte, com a prestigiosa condecoração da “Ordem do Infante D. Henrique” – e Carlos do Carmo. Na feminina, Hermínia Silva, Berta Cardoso e, sobretudo, Amália Rodrigues, a verdadeira embaixadora no mundo da “triste canção” [Sucena, 1992: 193-262].

A carreira de Amália da Piedade Rodrigues, nascida em Lisboa em 23 de julho de 1920, começou tranquilamente, mas sem encontrar nenhum obstáculo em particular. Tudo começou com sua participação, aos dezoito anos, na “Academia de Santo Amaro”, onde foi notada por um empresário que ofereceu suas audições para o “Retiro da Severa”, na época a mais famosa “casa de fado”, com os melhores músicos e prestigiosos “fadistas”, entre os quais o lendário e já citado Alfredo Marceneiro. Ela começou a cantar como Amália Rebordão (mais do que um pseudônimo, pois era o sobrenome de seu avô materno), com um repertório de apenas três “fados”. A jovem e bela recém-chegada foi imediatamente bem-sucedida, tanto que lhe foi oferecido seu primeiro contrato.

Sua bravura, juntamente com a simpatia e o carisma que sua personalidade desencadeia, garantem que o público, ao longo dos anos, lhe dê uma atenção inigualável. Além disso, sua sensibilidade musical lhe permite não só alcançar grande popularidade em sua terra natal, mas também conquistar audiências ao redor do mundo – tanto que se formou um binômio inseparável: “fado” = Amália/Amália = “fado”.

Qualquer um que escuta sua voz pela primeira vez ou, melhor ainda, teve a boa sorte – como é meu caso! – de ver e ouvir ao vivo, tem a clara sensação de estar na presença de uma artista completa, capaz de virtudes vocais extraordinárias e únicas que lembram a música árabe e andaluza, flamenca em particular, enriquecida por um forte senso de teatralidade. Portanto, possuindo uma formação e um patrimônio cultural que vai muito além da esfera nacional. No caso de Amália, talvez seja redutor defini-la simplesmente como uma cantora de “fados”. O termo “intérprete ibérica” seria mais apropriado.

Como noticiado anteriormente, desde as origens da “triste canção”, as classes sociais superiores sempre foram um elemento determinante na carreira de todo “fadista” de importância. Isto é amplamente demonstrado pelo caso de Maria Severa, mas também pelo de Amália, embora com nuances diferentes. De fato, se há mais de um século foram os proprietários aristocráticos que decidiam a sorte de um artista, em tempos mais recentes são as classes média e alta e uma nobreza cosmopolita e heterogênea que decretam seu sucesso.

Em 1949, Amália iniciou suas primeiras viagens pela Europa. Londres e Paris – esta última, sobretudo, já que já era o lar de muitos emigrantes portugueses – foram as cidades escolhidas para festivais promocionais concomitantes para o turismo. No ano seguinte, ela esteve no Teatro Argentina em Roma.

A consagração no topo do mundo da música chega a ela, porém, somente em 1955, após sua aparição no filme “Les amants du Tage”, dirigido por Henri Verneuil e protagonizado, entre outros, por Daniel Gerin, Françoise Arnoul e Trevor Howard. Em particular, uma canção na trilha sonora apelará aos franceses ,”Barco Negro” (com música do brasileiro Caco Velho e letra de David Mourão-Ferreira – um dos maiores poetas contemporâneos de expressão portuguesa e autor de muitos textos de fados para Amália), uma peça muito particular, difícil de executar devido à súbita alternância de tons altos e baixos. Isto lhe valeu um convite para se apresentar no templo da música por excelência, o Olympia em Paris (1956), obtendo um sucesso retumbante. Toda a França a homenageou como grande artista, colocando-a no mesmo nível de Edith Piaf e Yves Montand. Desde então, Amália tem conhecido uma fama sem limites, não apenas em toda a Europa, mas também nas Américas e na Ásia.

A Itália será um dos países que ela mais visitará, com várias turnês (1964, 1970-1973, 1975-1976, 1978-1979, 1981, 1983, etc.) e numerosos concertos, tanto em grandes teatros metropolitanos quanto em pequenos teatros provinciais. Os últimos concertos italianos datam de agosto de 1989, por ocasião de seus cinqüenta anos de associação com a música. Para sublinhar, além disso, sua capacidade de transformar em “fados” algumas canções estrangeiras. É o caso de “Canzone per te” de Sergio Endrigo, interpretado de forma sublime e que a artista, inserindo-o em seu repertório, considerará patrimônio adquirido da música fadista.

Além disso, será a própria Amália a dar um grande impulso, graças em particular a Alain Oulman – compositor francês, mas nascido em Portugal, de talento -, à chamada “poesia do fado”. Ela cantará versos não só de poetas portugueses e brasileiros contemporâneos (Pedro Homem de Melo, José Régio, David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, Cecília Meireles e muitos outros), mas também do grande Camões [5].

Tudo isso torna possível falar não apenas de um binômio Amália/”fado”, mas também de uma associação Amália/Portugal:

David Mourão-Ferreira, em um esplêndido e tocante artigo-retrato de 1994, escreve:

“A identificação de Amália com Portugal é […] uma espécie de emanação do inconsciente coletivo; e pode-se dizer que ela personifica exemplarmente não apenas seu Povo – com todos os traços de fatalismo e coragem que o caracterizam, a melancolia e a vibração que o animam – mas também os numerosos aspectos de sua paisagem variada e até mesmo de seu habitat físico, sua atmosfera, seu clima, seus amplos horizontes, agora envoltos em névoa, agora inundados de luz intensa. Na voz inconfundível de Amália, por um lado, ressoa aquele chamado oceânico, que de Portugal fez, logo após o final da Idade Média, os primeiros povos da Europa se lançarem à descoberta de novos mundos e, por outro lado, há um apego sincero às pequenas e grandes realidades da terra de seu nascimento: o rio, o vale, a montanha, a casa de granito no Norte ou a casa toda branca no Sul, o pomar, a floresta, a nascente, a planície e os lugares rochosos. Voz da diáspora e voz do terroir, voz da distância e da intimidade, com a amplitude das ondas mais altas e a discrição comovente dos santuários íntimos, a voz de Amália foi justamente por isso destinada a se tornar o instrumento ideal para a expressão renovada e ampliada do lirismo quase milenar de seu país, dos trovadores ao Renascimento, de Camões a muitos poetas contemporâneos […]. É certo, no entanto, que Amália nunca deixou de cantar poetas populares ou, melhor dizendo, poetas menos ligados à tradição culta da poesia portuguesa. A partir desta mesma circunstância procede-se tanto a extraordinária riqueza de seu alcance interpretativo quanto suas habilidades, que só ela possui, já que é compreendida, apreciada, amada, até adorada, por todos os estratos sociais da população e pelos mais diversos tipos de público. Tudo nela, porém, não é apenas um caso de extraordinária popularidade: é, ao contrário, um fenômeno mítico e, simultaneamente, quase místico de comunhão espiritual através da suprema aliança entre voz, palavra e música. E o mesmo xaile negro, com o qual Amália se apresenta em suas apresentações, esconde emblematicamente e revela o mistério insondável desta trindade mágica” [Citado em Dias, 1999: 12].

Amália Rodrigues, a “rainha do fado”, a “musa” e o “mito”, “o heterônimo feminino de Portugal”, morreu, com a idade de setenta e nove anos, no dia 6 de outubro de 1999, deixando seu país consternado e em lágrimas [6].

Desenvolvimentos recentes

Em Portugal, após 25 de abril de 1974 – o dia em que uma insurreição militar, que entrou para a história como o “Movimento dos Capitães” e que foi completamente sem derramamento de sangue porque praticamente não encontrou resistência, pôs fim à mais longa (quarenta e oito anos) ditadura da Europa contemporânea – um Conselho Nacional de Salvação tomou o poder. Além de proclamar a restauração dos direitos civis, a libertação dos presos políticos, a abolição da censura, a dissolução do PIDE/DGS, a legalização de todos os partidos anteriormente clandestinos (incluindo os socialistas e comunistas) e a autorização para criar novos partidos, convocou eleições para uma Assembleia Constituinte em abril do ano seguinte. Nos meses seguintes, porém, gerou-se um processo político cheio de incógnitas, pois o poder era administrado por vários órgãos (a Presidência da República, o Governo, o Conselho de Estado, as Forças Armadas), sem uma definição real das tarefas devidas a cada um deles: um ano após os acontecimentos de abril, ainda restavam muitas perguntas sobre o futuro de Portugal. De fato, durante quase todo o ano de 1975, persistiu um clima de incerteza e medo, determinado tanto pelas posturas contrastantes dos partidos individuais quanto, sobretudo, pelas fortes lacerações dentro das Forças Armadas, divididas pelas mais variadas tendências políticas e que condicionaram várias escolhas no início do processo revolucionário republicano, incluindo uma tentativa, felizmente evitada (25 de novembro de 1975), de estabelecer um regime autoritário e comunista [Garcia, 1984: 253-255].

A abolição da censura, enquanto por um lado levará à restauração da liberdade de pensamento e expressão, assim como à disseminação dos grandes ideais da democracia, por outro lado aumentará o clima de confusão. Todos podem expressar suas opiniões sobre e contra tudo/alguém. A mesma propaganda partidária utiliza, com facilidade, qualquer meio de comunicação adequado para atingir o maior número de eleitores. Assim, os meios de comunicação de massa tradicionais são flanqueados por outros, tais como faixas e murais elogiando este ou aquele partido, este ou aquele candidato, enquanto a música “comprometida” (em alguns casos explorada para fins partidários) grassa em todos os cantos do país. Mesmo no ambiente fadista, formou-se uma corrente de compositores, líricos e cantores politizados, destinados, porém, a desaparecer após os primeiros momentos de justificada euforia pós-ditadura, devido à falta de aprovação pública.

Entre os muitos autores de “fados” que se aventuram na política, surgem principalmente os da área social-comunista. Com exceções, no entanto. É o caso de João Ferreira-Rosa, que, em agosto de 1974, publicou “Fado. É no povo que vive esta canção”, um panfleto de tendência populista pró-monarquista [Ferreira-Rosa, 1974:]. Os verdadeiros protagonistas, porém, nos anos imediatamente posteriores ao 25 de abril de 1974, serão José Afonso e Adriano Correia de Oliveira: as duas principais vozes de protesto, unidas pelos mesmos ideais políticos. Ambos com formação “coimbrana” – tendo frequentado os círculos acadêmicos e musicais de Coimbra – e amigos na vida, Afonso e Correia de Oliveira se dedicaram apaixonadamente, como autores e intérpretes, à causa revolucionária. Seu compromisso foi total, comprovado por seus muitos concertos e gravações. Eles morreram, quase simultaneamente, no início dos anos 80.

A herança cantante destes dois autores certamente caracterizou uma época e hoje tem o valor de testemunho histórico indireto, mesmo que contradiga – e deve ser dito – tanto o espírito original do “fado” quanto os temas mais sentidos pelo público fadista. Em resumo, sua música está muito longe e, em alguns casos, diverge completamente do “fado” clássico, pois, em essência, representa uma ruptura com o passado, com a tradição (da qual a “triste canção” não pode e nunca poderá prescindir), em nome de ideais igualitários utópicos [Afonso, 1988; Correia, 1987].

Hoje, estas fórmulas musicais “comprometidas” foram muito redimensionadas, se não desapareceram completamente de cena; o que resta é o “fado”, o “verdadeiro” (7), a herança da tradição mais genuína e sólida de Portugal.

Fonte: Il Barbadillo

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Brunello Natale de Cusatis

Professor Associado da Universidade de Perugia, responsável das cátedras de “Literaturas portuguesa e brasileira” e de “Língua e tradução – línguas portuguesa e brasileira” do Departamento de Letras - Línguas, Literaturas e Civilizações Antigas e Modernas.

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